Muito além dos interditos alimentares: para uma antropologia do não-comer (Texto escrito pelo antropólogo Cláudio Luiz Pereira)

“Para onde ides vós [pobres]? Não é para a sepultura? Sim. E os ricos, os opulentos deste mundo, para onde vão? Para a sepultura também. Ah! Regozijai-vos então de ter para comer apenas vosso pedaço de pão, já que a sepultura é para todos o termo inevitável, vós, porque comeis menos, chegareis mais tarde, e, porque tereis comido menos, sereis menos comido... E quando os ricos e os pobres estão na sepultura, existe entre eles alguma diferença? Sim, e uma grande diferença, que é ainda em vantagem dos pobres: por uma alimentação superabundante a galinha é engordada para ser comida pelos homens, por ela, também os homens engordam a si mesmos, para serem comidos pelos vermes. Como para ser comido, oh! Que triste destino!... os corpos dos ricos, sendo cheios e carnudos, são verdadeiros festins para os vermes, enquanto para estes os corpos dos pobres, que são apenas pele e osso, só oferecem abstinência”. (Antônio Vieira – Sermões)


1. Introdução ao tema e ao problema. 
A antropologia da alimentação, nos últimos anos, vem se consolidando como uma especialidade antropológica bastante eclética, produzindo um conjunto de estudos, realizados ou não de acordo com uma metodologia própria, e que congrega abordagens de temas e problemas relacionados à comida e à cultura: a alimentação, os aspectos nutricionais, a ecologia e sua relação com produção e consumo alimentar, os aspectos rituais do comer, etc. Muito se tem escrito, desse modo, sobre o ato social de comer, e, logo, sobre o fato de que esse comer ultrapassa as fronteiras da dimensão puramente natural, e se enraíza na dimensão da cultura, de modo tal que em torno dessa ação do “comer” o homem construiu uma teia de significados, fundamentais no que concerne à sua vida, e à sobrevivência de sua espécie. A evolução biológica do homem guarda estreita relação com sua história de adaptação técnica aos constrangimentos do meio ambiente, o modo como se deu a colonização de novos habitats, a exploração de nichos ecológicos estranhos e, ademais, a busca de acesso a recursos ainda não explorados. O homem, já no estágio de hominídeo, se tornou um animal onívoro, tornando-se capaz de devorar além de vegetais outros animais, desenvolvendo assim um sistema digestivo capaz de metabolizar diferentes tipos de alimentos. É natural, pois, que muito se valorize, no âmbito da vida cotidiana, bem como nos estudos antropológicos, o ato primordial de alimentar-se (observando-se o “de comer”, “aquilo que se come” e “como se come”), e pouco se atente a seu contraponto, ou seja, pouco inquérito haja sobre o ato de não-comer, isto é, de abster-se de alimentos por razões pragmáticas, sejam elas médicas ou religiosas, ou por motivos patológicos, ou apenas porque não se tem o necessário alimento disponível. Comer e não-comer são práticas sociais que articulam a natureza à cultura. Comemos e não-comemos porque isto faz sentido, ou seja, a isto atribuímos um significado pessoal ou social. Meu objetivo na presente conferência (realizada no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, em novembro de 2011) é reivindicar um lugar para uma antropologia do não-comer dentro desta antropologia da alimentação. Para alcançar tal intento pretendo esboçar, baseado numa indiscutível e presumida relacionalidade entre comer e não-comer, uma articulação entre diversos textos, antropológicos ou não, que abordam a questão deste negativum cultural, que eu aqui chamo de não-comer. Pretendo assim retorcer as idéias, até que elas nos apresentem a realidade por um lado invertido. O não de não-comer, como aqui exposto, não deve ser visto como uma mera negação. Para aqueles que estranham o uso do “não” seguido de hífen para caracterizar meu objeto, o não-comer, lembro que Marc Augé apresentou o conceito de Não-lugares, com o qual introduz sua antropologia da supermodernidade. O ponto de partida de minha argumentação é que é a cultura que nos diz “quando” não-comer, “onde” não-comer, bem como o “por que” e “para que” não-comer. Como operação reversa, com relação ao comer, pode-se fazer, portanto, as mesmas indagações, com exceção de “o quê”, já que não se tem “o que” não-comer mesmo. Minha argumentação seguirá basicamente este propósito de ressaltar essa ambivalência, esta dimensão negativa e positiva embutida no não- comer, e que aqui dirá respeito ao jejum, à greve de fome, às dietas e os regimes, assim como os distúrbios alimentares, já que as doenças são também problemas da cultura. O não-comedor não deve ser visto, neste sentido, como o faminto, mas como o que não tem vontade ou recusa o comer. É esta recusa ou falta de vontade de comer que contradita as idéias de que homem é um animal voraz por puro impulso natural, e de que toda cultura humana se constrói, tout court, em torno da centralidade do tubo digestivo. Desse modo, comida não é apenas alimento. Comida é afeto, gosto bendito ou maldito, e o que não-se-come também o é. Alimentar-se parece ser condição sine qua non da natureza, da manutenção do corpo, da prevalência da dinâmica de um metabolismo, de uma fisiologia própria para ingerir, processar digerindo, e dispensar os resíduos. Comer, por outro lado, é um atributo da cultura: certamente é esta que dita “o quê”, “como”, “quando”, “para quê”, e “porque” comer. Em torno do comer, é verdade, poder-se-ia tecer toda uma psicologia do alimentar. Com o não-comer poder-se-ia reivindicar uma psicologia do não-alimentar. É curioso que sejam tão comuns as queixas dos pais de que os filhos não se alimentam, de que eles não-comem. Não-comer é um ato psicológico e físico, uma experiência interna que nos atinge no âmago. Se um homem é o que ele come, como se diz repetidas vezes, um homem não é aquilo que ele não-come, não-comer implica muitas e diferentes coisas: vontade, denodo, elan, resistência e equilíbrio moral, determinação, despojamento, etc. Desejo de comer tem como contraponto a vontade de não-comer, mas deve-se notar, todavia, que tais termos, desejo e vontade, não são nem simétricos, nem equivalentes. Comer para além do suficiente, se locupletar ou se valer da justa medida para a comida, que deve ser sempre justa, depende do nosso senso de saciedade. Até por isto o não-comer, pode ser definido por seu caráter parcial ou total. Para explorar este lado reverso de nossa cultura, o do não-comer, bem sabemos, seria necessário construir toda uma etnografia, o que faria com que este campo fosse mais bem elaborado. Pistas de investigação não faltariam aos candidatos a pesquisadores para a área designada, e por isto mesmo formulo uma problemática particular, qual seja: qual a função do não-comer na vida das pessoas? O que sente e como se comporta quem não-come? Quais os mecanismos fisiológicos e psicológicos da fome e de não-comer? Como as pessoas não-comem? Quando as pessoas não comem? Onde as pessoas não comem? E, no caso dos interditos, o que as pessoas não podem ou não devem comer? E o que elas efetivamente não comem? Iremos ter como pano de fundo, portanto, a idéia de que alguns não comem podendo comer, e é este fato que nos intriga na nossa cultura. 

2. O Jejum e as dimensões espirituais e religiosas do não-comer. 
Uma primeira aproximação nos aponta um aspecto curioso que respeita a relação entre comida e a religião: comer excessivamente leva ao pecado, jejuar conduz à virtude, à santidade. Abstinência de comida é fonte de purificação, o jejum fortifica, aniquila o mal. O jejum, a abstinência alimentar, é uma privação parcial ou total de alimentos. Em geral é feito por motivos religiosos, assim como, também, por motivos terapêuticos ou higiênicos. O sentido mais pleno do jejum, todavia, é o espiritual. Quase todos os profetas alcançaram revelação, que é o fundamento da religião, através da abstinência alimentar. No judaísmo o jejum assumiu forma de Iom Kipur, o mais que importante Dia do Perdão. A relação com a comida também se inscreve na cultura religiosa judaica através da dieta kasher. Esta implica em práticas alimentares complexas, e que se articula a uma conjunto fixo de leis e costumes, para o qual é requerido um adestramento fiel dos judeus. Muitas são, portanto, as regras do não-comer que aqui estão explícitas e implícitas. Na cultura cristã a relação entre o comer e a espiritualidade é fundadora. Repare-se, por exemplo, que o primeiro pecado é uma decorrência da desobediência a uma restrição alimentar. Deus disse que era para não-comer daquela fruta. E o pão nosso de cada dia...? e após quarenta dias sem comer, Jesus, ao ser tentado por um bem alimentado Satanás, a transformar a pedra em pão, responde de que nem só de pão vive o homem, mas da palavra de Deus. Comer e não-comer se desdobram em ações sacrais no cristianismo. No catolicismo são conhecidos, ademais, os poderes das Santas jejuadoras, anoréxicas avant la letre (são tantas, como Santa Rosa de Lima, Santa Catarina de Siena, Santa Colomba de Rieti, Santa Catarina de Gênova, Santa Verônica, Santa Maria Madalena de Pazzi e Santa Clara de Assis). Retomaremos, mais à frente, o imaginário cristão sobre o não-comer, porque ele é constituinte de nossa cultura. Por ora, passemos então em revista o islamismo, onde o jejum ritual é um dos pilares da religião, sendo obrigado para o muçulmano o resguardo alimentar durante o Ramadã, o mês de agosto. Os outros pilares são: a recitação e aceitação da crença (Shahada); orar cinco vezes ao longo do dia (Salah); pagar esmola (Zakah); fazer a peregrinação a Meca (Haj) se tiver condições físicas e financeiras. Deus considera o jejum, de acordo com o profeta Maomé, como a melhor de todas as orações, justamente porque somente Ele e o fiel é que sabem sobre a sua veracidade do cumprimento de seu voto. A palavra Ramadã encontra-se relacionada com a palavra árabe ramida, “ser ardente”, possivelmente pelo fato do Islão ter celebrado este jejum pela primeira vez no período mais quente do ano. A abstinência é observada da alvorada até o por do sol, o que também, neste período, se aplica às relações sexuais. O crente deve não só abster-se dessas práticas, como também não pensar nelas e manter-se concentrado em suas orações e recomendações a Deus. Além das cinco orações diárias, durante esse mês sagrado recita-se uma oração especial chamada oração noturna.O jejuador deve abster-se de tudo que vai contra a regra religiosa, pois o jejum é visto como uma grande prática capaz de trazer componentes de disciplina e da doutrina, tanto espiritual como moral. A ação não se limita somente à abstinência de comer ou beber, mas também de todas as coisas más, os maus pensamentos inclusive. O jejuador, como regra, deve ser indulgente se for insultado ou agredido por alguém, deve evitar todas as obscenidades, ser generoso, bem mais do que nos outros meses, assim como aumentar a leitura do Alcorão. No budismo, o jejum como meio para atingir compreensão espiritual foi amplamente usado, mas algumas correntes defendem a substituição do jejum pela meditação, como meio para atingir a compreensão espiritual, o nirvana. Ou seja, todos os modelos de religião de algum modo trabalham a comida em demasia como pecado, por um lado, e a abstinência dela, o não-comer, por outro, que é visto como um fator de santificação, de sacralização, como instrumento de ascese. Mas se para todo pecado existe um castigo, ou seja, uma forma de expiação, para os delitos associados aos tabus alimentares, também existem forma de contrições exemplares. Exceder-se no comer, aproveitar-se em demasia da abundância de alimentos, é visto na nossa cultura religiosa como um pecado que está associado não só a gulodice, como também a intemperança (onde a questão do poder e do controle pessoal está implicada) e a embriaguez. É curioso que a gula e a luxúria tenham em comum a expressão “comer” como designação do móvel do pecado. Instintos humanos essenciais, a fome e o desejo sexual, são não apenas necessidades primárias, mas também prazeres inqualificáveis. Comer é saborear, não-comer é privar-se do gostoso. Do comer, logo, depende a sobrevivência da nossa espécie. Comer é assim uma metáfora para uma conjunção carnal, para usar outra metáfora, também de caráter alimentar. Alguém comer alguém é possível no plano sexual, mas interdito no sentido alimentar. Vide as restrições ao canibalismo, mesmo quando ele é indispensável à sobrevivência de alguns, ou seja, mesmo quando ele é moralmente aceito por alguma razão grave. É por isto que a gula, o comer acintosamente e sem sabedoria, tornou-se um delito religioso capital, ou seja, tornou-se um pecado que conduz a outros pecados. Comer em demasia, sobretudo, é condenável religiosamente, e é um delito que merece o fogo do inferno. Na cama e na mesa, comer você pode, mas não deve se aproveitar disto não. Esta é, portanto, a mesma raiz do pecado. É por esta imagem da transgressão através da fartura quase grotesca, que a modernidade vai introduzir os argumentos da culpabilidade moderna dos gordos, como veremos a seguir. Porém, outro aspecto relevante desta relação entre não-comer e religião diz respeito aos interditos alimentares. Com efeito, não respeitar condutas alimentares, quando sancionadas religiosamente é grave delito moral. Note-se agora, portanto, de que toda cultura religiosa necessariamente tem um repertório de interditos alimentares. São quizilas, quando não abominações, evitações. Restrições a determinadas comidas são preceitos absolutamente funcionais. Eles funcionam por alguma razão, cumprem um papel importante nas crenças, nos rituais, nas organizações religiosas. As quizilas ou Euós, aliás, os tabus e preceitos alimentares das religiões afro-brasileiras, já foram exploradas corajosamente por nossos etnólogos, que as situam num contexto de transgressão, de reparação e da organização de um mundo religioso que tem uma peculiar dinâmica. As coisas proibidas de comer (sú Dudu), são distintas das coisas proibidas de fazer. Para as primeiras são fixados tabus e para as segundas preceitos. No caso das religiões judaicas e cristãs as abominações indicam objetivamente restrições ao comer. O Levítíco e Deuteronômio, foram excepcionalmente explorados por Mary Douglas na sua obra Pureza e Perigo, onde ela conclui que a objeção, ou as abominações a comer determinados animais (muito engraçada é a taxonomia explicitada pelo legislador: animal de casco fendido, ruminante, marítimo de couro e não escamas, etc.) se enquadram num quadro geral de santificação, que é operado heuristicamente a partir dos conceitos de puros e impuros. Por fim, merece ser comentado, como um elemento peculiar desta cultura do não-comer com motivação espiritual, aquilo que se chama de inédia, ou seja uma suposta possibilidade de sobreviver sem comer. Prana, assim como a luz solar, são tidos como repositores de energia. A comunidade Vivendo de Luz reúne mais de 450 seguidores na Internet. Pessoalmente conheci pessoas que passaram pelo processo de 21 dias, desenvolvido por Jasmuheen, que leva à abolição da comida, o que é visto como uma virtude quase que mágica. Crenças e eficácia da crença, à parte, este é um prato bem nutrido esperando por antropólogo disposto a fazer mais observação participante que participação observante, frente ao não-comer. 

3. Greve de fome e fisiologia da fome. 
Não se pode adentrar no tema do uso político do não-comer sem questionar o valor moral que tem a fome para nossa civilização e contemporaneidade. A fome gera um sentimento moral de repulsa, porque um dos maiores fantasmas para a humanidade é justamente a não provisão de alimentos. Seus efeitos são deletérios, e em uma escala maior induzem, quase sempre, a um nível de desorganização que torna as sociedades insustentáveis. Multidões famélicas são perigosas. Tornam-se turbas que encenam as fatídicas danças da morte... O que são nossas classes perigosas senão a população relegada a sub-alimentação, a uma dieta insustentável? De acordo com a FAO, havia no mundo, segundo dados do último ano, 1,017 bilhão de famintos. A maior parte estaria na Ásia e no Pacífico (642 milhões), na África (265 milhões), na America Latina e Caribe (42 milhões) e também nos países desenvolvidos (15 milhões). É a mesma fome, se diz alhures, que faz a fortuna dos especuladores que ganham operando o estoque, a oferta e a procura de alimentos. Mas, que significa não-comer num mundo que tem fome? Visto numa perspectiva normal, não-comer é uma opção moral, espiritual, política, terapêutica, e se realiza na condição de que um determinado objetivo seja alcançado. A sensação de fome é atroz para quem é acostumado a comer. Em tese é uma dor, lancinante, aguda e surda, localizada na região superior do ventre. Ao mesmo tempo é uma vontade furiosa, intestina, de querer comer. A fome é diferente da sede, todavia, sobretudo porque essa última se configura pela secura da mucosa da boca, além do desejo de ingestão de líquidos. A fome prolongada traz, paradoxalmente, alterações metabólicas que reduzem e anulam o sofrimento do faminto. Na falta de água, contudo, a língua se cola no céu da boca, aumentando drasticamente a sensação de mal-estar. Os mecanismos da fome podem ser observados primariamente pela baixa de glicose, e outras substâncias no sangue, e pelas contrações dolorosas do estômago vazio. Tendo em conta a falta de alimento, o organismo libera hormônios para manter um funcionamento equilibrado. A sensação de fome é difusa, em parte é contração intestina, em parte é sofrimento psíquico. Tão grave é a noção de fome para a humanidade que sua representação inscreve-se no nosso imaginário. Penúria de alimentos é um fantasma que assusta e assombra nossa civilização. O medo da miséria e da fome marca nossa história. Por isto mesmo, numa escala global a imagem da fome provoca uma contrição moral, é prova da falência de nossa civilização, num nível universal. A fome é, sempre, uma questão política, de Estado, de nação, de sociedades. Dar de comer a quem tem fome é sabidamente obra da misericórdia humana. O não-comer tendo fome e alimento, todavia, ganha notoriedade, historicamente, em contextos políticos que lhes dão uma inusitada singularidade. Dois deles merecem ser aqui examinados, haja vista o que eles trazem de contribuição a propugnada antropologia do não-comer: um é a fome como punição judiciária, outro é a greve de fome como recurso de pressão política. O não-comer, como forma de punição, aparece sem igual no livro de Carlos Sueiro, El Arte de Matar, dedicado ao uso social de penas capitais. Para ele, deixar morrer de fome a um réu foi tradicionalmente um meio de execução fácil e econômico. Da Roma antiga a China medieval, os “fossos de fome”, profundos como os infernos, foram operados regularmente. Calcula-se, aliás, que cerca de quinhentos mil dos três milhões de judeus executados em Auschwitz morreram de inanição. Mas o gênio humano nesta área penal, diga-se passagem, deu prova de engenho sem igual ao realizar na punição uma forma de tormento único, pelo qual passaria o executado. O objetivo era de que ao ser privado de alimento, não se morresse de fome imediatamente, mas numa agonia e sofrimento lento e espetacular. Na Grécia, por exemplo, alguns ímpios eram condenados a morrer de fome, sentados diante de mesas abundantes, e de banquetes suntuosos. Na Inquisição, também, a “máscara da fome”, era um aparato metálico que cobria o rosto e impedia que o maxilar se movesse e, logo, o réu de se alimentar. Também aqui o executor se comprazia em apresentar saborosos manjares e suculentas bebidas frescas. Vale mencionar que execuções também foram realizadas obrigando os réus a comer: a ingestão de venenos, por exemplo, de bambus que fermentam e se expandem no estômago, de ingestão de frutas em demasia, ou de alimento salgado que leva a uma alucinante sede. A greve de fome, por seu lado, se encaixa como parte de uma doutrina política que ficou caracterizada como “método de intervenção não violento”, e que inclui, também, a auto-exposição aos elementos, o jejum, o jejum de pressão moral, o jejum satyagrahica (postulado por Gandhi como uma palavra que significa “estar conectado a verdade”). Reivindicação de direitos atingidos, pressão política, a greve de fome tem uma peculiar força moral, já que não afeta diretamente o alvo da insatisfação. Deixar alguém morrer de fome é gesto desonroso, vexaminoso socialmente, e inadmissível por força de muitas convenções políticas das quais os Estados nacionais são signatários. 

4. As preferências alimentares, as dietas e os regimes. 
Dietas, moderação e nutrição são palavras pululantes do nosso repertório lingüístico moderno. A obsessão de nossa cultura por dietas e regimes talvez seja, em parte, decorrência da nossa forte influência religiosa, e de certos modelos estéticos com os quais moldamos nossas modernas medidas corporais. A ditadura da magreza, o glamour com que são divulgadas as práticas alimentares das celebridades, os aspectos do mercado, com suas ofertas e demandas de alimentos, a melhoria do poder aquisitivo com a inclusão social de contingentes cada vez maiores de pessoas e o conseqüente aumento do consumo alimentar, promoveram transformações nos últimos anos que se refletem nos dias atuais. Vamos dizer que a culpabilização dos gordos é um dos dispositivos que levou a medicina a desenvolver especialidades que dão inteligibilidade aos efeitos do comer em demasia. Farmacologia endocrinológica, cirurgia bariátrica, balões acoplados ao estômago para dar a ilusão da comida, anéis e ganchos, são instrumentos mirabolantes que fazem face a impossibilidade de alguns não conseguirem não-comer. Os gordos, que foram outrora uma espécie de ofensa a Deus, hoje são apenas afronta a nossos padrões de saúde, e beleza, é claro. A propósito disto, aliás, vale mencionar um dos sermões do nosso querido padre Vieira, feito no Maranhão, transcrito e encontrado na obra de Delumeau (2003, p. 253), e referido na epígrafe deste texto, que mostra o lado macabro da gordura. As dietas, todavia, não foram feitas exclusivamente para os gordos. Porém, para esses numa dieta não existe somente o que se come, mas também tudo o que não se deve comer. Todas as dietas, construídas no nível da cultura popular, são dietas de engorda. Não é à toa, portanto, que a maior parte dos obesos se encontra nas classes menos favorecidas. A exceção me parece ser a dieta chinesa, na qual eles comem de tudo, mas, mesmo assim, são delgados. Até quando não sabemos. É voz corrente que a palavra dieta indica uma maneira de conduzir alterações alimentares, que visam fins permanentes. Além disso, toda dieta se baseia num repertório de itens que podem ser comidos, enquanto outros não são recomendáveis, logo são não-comestíveis. É nossa cultura que ordena “fechar a boca”, e é ela que constrange a abri-la, também. Dieta, entretanto, hoje ganhou o apelido de reeducação alimentar, onde se deve aprender mais a não-comer do que propriamente a comer com liberdade. Já regime pode ser para emagrecer, mas também pode ser para engordar. Regime é basicamente a opção pelo aumento ou redução alimentar num determinado tempo, visando determinado fim. Perder peso, por exemplo, deve ser obtido ao fim do período de controle alimentar estabelecido, e são estritas as regras do não-comer. Regime implica quase sempre fronteiras psicologias nas quais são equacionadas as relações do tempo com o peso, ou a saúde, daquele que faz regime. É curioso, aliás, o dinamismo circular dos regimes (e nisto pode-se ver o ritualismo e as crenças envolvidas no não-comer), que se desdobram em dias, semanas, meses, e, por isto mesmo. Lembrem-se do efeito da segunda-feira, como dia ideal, ou não, para começar um regime. Por fim, vale mencionar que os inibidores de apetite são, certamente, um dos aspectos mais curiosos que o interessado na antropologia do não-comer pode explorar. Apetite, não custa lembrar, indica as preferências alimentares que cercam certos padrões de comida, que uma pessoa pode encontrar. Comidas apetitosas são irrecusáveis e, portanto, se tornam fortes apelos contra as regras do não-comer. 

5. Os distúrbios alimentares. 
Anorexia, bulimia, obesidade são palavras-chaves do mundo moderno. Pautamos nossa vida alimentar em padrões de comportamento culturalmente fixado. O comportamento alimentar implica dimensões fisiológicas e nutritivas, psicodinâmicas e afetivas, além da dimensão relacional, que só o uso da boca implica (o mal não é apenas o que sai da boca do homem!...). Por isso o comportamento alimentar é complexo, e de importância central na vida cotidiana. Enquanto conduta, a ação de alimentar-se, é motivada de maneira consciente a partir das sensações básicas de fome, de sede e de saciedade, geradas, controladas e monitorizadas pelo organismo como um todo. O centro de saciedade, entretanto, está no cérebro, na região do hipotálamo, onde a saciedade se situa mais localmente, e em outras estruturas límbicas e corticais. Anorexia, em grego, significa falta de apetite. Anorexia nervosa se caracteriza pela distorção da imagem corporal, pela busca implacável de magreza através da perda de peso auto-induzida, seja por abstenção alimentar ou por comportamentos purgatórios, também auto-induzidos, ou exercícios excessivos e extenuantes, além do uso de anorexigeneos ou diuréticos. Como um grave estado nutricional o corpo padece de alterações endócrinas, metabólicas e eletrolíticas. Já a bulimia nervosa caracteriza-se pela preocupação permanente com o comer e por um desejo irresistível por comida, chegando a condição de hiperfagia. Estes fatores se aliam a preocupações exclusivas e intensas com o controle do peso corporal. Por fim, em relação à obesidade deve-se lembrar que esta é uma condição complexa, e, em geral, determinada tanto por fatores genéticos, de desenvolvimento psicológico, de família, de classe social, assim como de cultura. A obesidade associa-se a elevadas taxas de morbidade e de mortalidade. Se no passado era um pecado que levava a outros pecados, hoje é uma “doença” que leva a outras doenças. Deixarei de lado os problemas culturais concernentes a obesidade, faço isto considerando que a trajetória dos gordos na nossa história varia de acordo com os momentos peculiares da racionalidade humana, haja vista que eles evoluíram de um estigma para uma situação distintiva de orgulho, sobretudo numa realidade em que se busca incontinente as recompensas deste mundo mais do que de qualquer outro, inclusive o do além. Problemas de saúde pública, como é a obesidade, tornam-se, eventualmente, graves problemas econômicos. Reivindicam, por outro lado, tomadas de posição da cidadania, sobretudo quando direitos são ofendidos (é o caso do uso de duas cadeiras por gordos no avião, ou cadeiras para gordo no cinema), por força de uma situação que também é dada pela cultura. Afirmarei, desse modo, que o dilema para os obesos não é certamente o comer, coisa que aparentemente ele faz com muita naturalidade, mas sim o não-comer num mundo em que se oferece publicitariamente o consumo do comestível. Fome e sensações desagradáveis, de modo geral, são percebidas como coisas equivalentes, ou seja, o obeso falsamente percebe como sendo fome todo e qualquer mal-estar. Paradoxalmente, até a culpa por comer dá fome. O obeso não para de comer, pelo que nos diz a psiquiatria, porque ele tem uma disfunção dos mecanismos de saciedade. Não vou insistir, todavia, em elaborar aqui uma argumentação médica sobre os distúrbios alimentares, e em particular sobre a anorexia e a bulimia, além da obesidade. Pretendo nessa sessão tecer algumas considerações, baseado em fontes antropológicas, sobre como estas doenças se encaixam num contexto de cultura. Para tanto vou apontar aqui para um curioso livro escrito por René Girard. Trata-se do texto “Anorexia e desejo mimético”, no qual o antropólogo exercita sua teoria do mimetismo sobre esta perturbação alimentar, que ele julga atingir proporções epidêmicas. Para ele a cultura mais obcecada pela comida, em toda história ocidental, é a nossa. Vivemos num mundo em que comer demasiado e não comer o suficiente são duas maneiras opostas, mas indissociáveis, de fazer face ao imperativo da magreza que domina o imaginário coletivo. Vivemos, então, a “Fobia universal das calorias”, e a comida será sempre a droga menos perigosa para nossa saúde. Para Girard “nossos pecados estão escritos na nossa carne e devemos expiá-los até a última caloria, através de uma privação mais severa do que a que uma religião alguma vez impôs aos seus adeptos”. Eis o tempo do não-consumo ostensivo, no vestuário assim como na alimentação. Eis o tempo da competição e da rivalidade mimética: “No mundo desenvolvido as forças que nos levam a consumir são tão fortes quanto as que nos levam a jejuar. O consumo excessivo é favorecido pela enorme pressão publicitária e pela abundância de comida barata, bem como pelo desaparecimento de todos os impedimentos religiosos e éticos”.

6. Conclusão
Tentei esboçar nas páginas precedentes uma provocação, que eu suponho séria, sobre um tema antropológico que, acredito, merece um valoroso empenho de investigação. Mas o que pude oferecer aqui foi apenas um aperitivo, aquilo que deve abrir o apetite, porque saber e sabor são palavras que guardam uma mesma origem. Ou seja, basicamente tentei chamar atenção de que determinados aspectos “negativos” da nossa cultura podem ser abordados a partir de certa positividade e o não-comer é um deles. Relativizar as coisas faculta isto e acredito que o efeito disto seja um pouco irônico ou engraçado, mas reafirmo o caráter austero de minhas colocações. Não pensei em convencer quem quer que seja a não-comer, mas tentei demonstrar de que o não-comer está presente no nosso cotidiano, nas notícias dos jornais, na televisão, na internet, etc. Ou seja, não-comer é um elemento importante na história humana. Enfim, para concluir, vou evocar aqui a contribuição literária ao não-comer na singularidade de Kafka. Ele escreveu o enigmático livro “O artista da fome”, no qual narra a história de um último jejuador de um destes espetáculos de horrores que povoavam o mundo, no século XIX. No conto, o jejuador morre de inanição, mas por uma razão absurda: não encontra o alimento que lhe dá apetite. Deduzo, aliás, de tudo que foi posto, que comer bem não é comer muito, é comer melhor. E comer melhor só é possível não-comendo, também.

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