Comendo com o Boca do Inferno

Para James Amado, João Carlos Teixeira Gomes e Fernando Peres, parceiros de mesa do Boca do Inferno.          

    Gregório de Matos, o Boca do Inferno, assim denominado por seu versos críticos e satíricos, já foi abordado sob diferentes perspectivas  e pelos mais diversos autores. Porém, estava a faltar uma visão da realidade colonial, a partir dos alimentos  contidos na sua poesia. É o que faz Claude Papavero, na sua tese de Doutorado na USP, em 2007, intitulada Ingredientes de uma Identidade Colonial: os alimentos na poesia de Gregório de Matos. Devido à amplitude e densidade,  seria muita pretensão, em poucas linhas apresentar e discutir o seu trabalho na  sua totalidade. Serão apenas notas sobre o que considerei mais importante e sugestivo no seu instigante texto.
               Como nem todos os leitores conhecem quem foi o inquietante autor do século XVII, mostrarei aspectos  da sua biografia. Gregório de Matos nasceu no Convento de São Francisco, na freguesia da Sé, na Bahia de Todos os Santos, em 20 de dezembro de 1633. Doutorou-se em Coimbra, já “assombrando” na poesia; casou, enviuvou, já sendo em 1671, Juiz do Cível em Lisboa. Retornou ao Brasil em 1682, assumindo o cargo de Vigário-Geral e Tesoureiro-mor da Sé. Em agosto de 1683, por recusar-se a usar batina e por seu pendor mulherengo, foi demitido pelo novo Arcebispo. Em 1693, por atacar a honra do Governador Antonio Coutinho lhe valeu uma sentença de  degredo em Angola. Na África, pelos serviços prestados, ganhou a sua liberdade para retornar ao Brasil, vindo para Pernambuco. Ali se instalou e veio a morrer em  1696.
           Membro de família de senhores de engenho, residindo na Bahia por mais de uma dezena de anos, figurava como um autêntico mazombo – português nascido no Brasil – versado nos significados autóctones de gestos e emoções, que governavam a vida dos portugueses na capital e adjacências. Nada de pensar em nativismo nos seus versos, mas antes um processo social ativo de auto-identificação das elites soteropolitanas. Nem de longe ficar contra o Reino, o que ele queria, na sua perspectiva, era “consertar” os desmandos na Colônia. Comentários irônicos, trocadilhos insultuosos e de duplo sentido, construídos por meio de metonímias, sinédoques ou metáforas.
         Constituiu, um tema frequente, gerador de muitas alusões raivosas, a rivalidade entre negociantes de passagem e comerciantes locais, entre  os últimos e os colonos estabelecidos na zona rural, que produziam os gêneros exportados e de abastecimento da cidade da Bahia. As dificuldades pessoais que o poeta enfrentou no Brasil, coincidiram com as tensões sociais em torno da queda do preço do açúcar, a falta de dinheiro líquido e a escassez de alimentos. Adicione-se a esses elementos, a sua visão hierarquizante  e idealizada do que deveria ser a vida soteropolitana, o seu envolvimento com mulheres do povo, além dos desafetos pessoais, que não cessavam. Indignava-se com a escassez de alimentos e as frotas abarrotadas: [....frota com a tripa cheia/povo com a pança oca...].
A maioria das metáforas de cunho alimentar pareceu, por conseguinte, se concentrar nos poemas de inspiração satírica ou burlesca. Destacaram-se particularmente em poemas marcados por uma veia erótica. Como no poema sobre Itaparica: [..Ricos polvos, lagostas deliciosas/ Fartas de putas, rica de baleias..]. Nele, perpassa a ideia recorrente de equivalência carnal simbólica entre sexo e alimentação. Não foi nada sutil ao formular representações para se referir ao baixo corporal, usando formas oblongas de vegetais, como: nabos, pepinos, carás, quiabos, milho e bananas. Faz, através dos alimentos, críticas contundentes aos vícios que grassavam no Recôncavo: o pecado da  avareza, vaidade e arrogância, a preguiça, a gula, a reação aos que buscavam ascender, a luxúria dos padres e frades. As metáforas utilizando alimentos, muitas vezes, apontavam para a presença de uma forte proporção de mulheres e homens promíscuos na sociedade colonial.
              O Boca do Inferno não suportava a flexibilidade portuguesa, em relação às origens nativas. Chamava aos descendentes de Caramuru, de “Adãos de massapê”. Tornaram-se conhecidos os versos dedicados “Aos principais da Bahia, chamados os Caramurus”: [... A linha feminina é carimá/ Moqueca, pititinga, caruru/ Mingau de puba e vinho de caju/ Pisado num pilão de Piraguá/ A masculina é uma Aricobé/Cuja filha Cobé um branco Pai/ Dormiu no promontório de Passé. ....] São os versos  mais emblemáticos da sua repulsa à dieta nativa. Detestava os mulatos, em especial os bem sucedidos: “Para o bêbado mestiço/ e fidalgo atravessado/ que tendo o pernil tostado/ cuida que é branco castiço”. Desagradava-lhe também  a presença dos cristãos-novos, daí as suas insinuações sobre a ingestão de feijões, chamados em Portugal de judias. Sobre a comida dos negros nada fala, afinal, apesar do já então significativo contingente demográfico de africanos e crioulos, eles eram o mais baixo nível da sociedade local. Além de adjetivos depreciativos – feios, fedorentos, supersticiosos, ignorantes, entre outros  - o que percebeu foi a manutenção das suas crenças religiosas, através dos calundus ou do sincretismo religioso. Gregório de Matos no seu comer sobre os alimentos locais, só a farinha de mandioca escapou ao repúdio do poeta. Como já havia comentado Fernando Peres, e a autora reitera,   era frequente a aproximação entre as noções de medicina humoral e os manejos alimentares na Colônia.  Fundamental também é a sua etnografia dos procedimentos alimentares soteropolitanos. Muitos outros são os aspectos que mereceriam atenção na tese de Papavero, mas, para não cansá-los vou concentrar-me na sua hipótese central.
           A mestiçagem iniciada cedo, não foi acompanhada por uma mescla de alimentos entre os privilegiados. Ao ingerirem iguarias apetecidas ou recusarem alimentos considerados repugnantes, eram os critérios morais de uma comestibiidade apropriada que os soteropolitanos colocavam em jogo. Existia uma perfeita associação entre a posição na hierarquia social e o tipo de consumo alimentar. Conforme a autora, a permanência das práticas alimentares lusas foi assegurada pelo transplante bem sucedido de inúmeras espécies vegetais cultivadas em terras portuguesas, sendo que todos os animais domésticos portugueses prosperaram no Brasil.  O ritmo cotidiano das tomadas alimentares, as técnicas lusas de  preparo culinário ou de condimentação e o envio de gêneros alimentícios, através das naus, que não podiam ser obtidos localmente, tudo isso contribuiu para prolongar a maioria dos hábitos alimentares provenientes da pátria de origem. Os portugueses instalados no território colonial retiveram, inicialmente, apenas certos alimentos e formas de preparo presentes nas dietas indígenas. E esses produtos eram consumidos à moda portuguesa, assegurando a continuidade dos procedimentos culinários europeus.
         As mudanças ocorridas na alimentação local ao cabo de um século e meio de colonização, geraram, segundo Claude Papavero, formas de desmediterraneização  - eu diria deslusitanização, afinal Portugal é também Atlântico – pragmática da dieta, um ajustamento às condições ambientais circundantes. O conhecimento e aproveitamento dos recursos alimentares locais, não mudou o fato que a população colonial continuou a compartilhar valores fundamentais coma população lusa da metrópole. Os versos do poeta indicam uma rejeição dos mazombos ao paladar de uma grande parte dos ingredientes e dos preparos locais. Que Matos recorresse aos serviços sexuais das moças de “cor de azeitona” não afetava a sua corporeidade, tanto quanto  escolhesse alimentar-se  de preparos à moda indígena ou africana.       O aumento do contingente de escravos alforriados, o crescimento da população mestiça e os lusos pobres, geraram a inserção de novos ingredientes e formas de preparo ao comer local. Começava a ser criada uma culinária popular soteropolitana. Porém, ela não encontraria guarida, ao menos publicamente, nas mesas senhoriais.
              Uma tese de extrema qualidade, elaborada por uma qualificada antropóloga, indispensável, por seu rigor, para a compreensão da formação da cozinha brasileira. Concluindo, ela se constituiu também, no que muito agradeço a Claude, em base e fonte de inspiração para o meu artigo ( Afro-Ásia, no. 48) sobre o  irreverente – no mínimo – Vilhena.

 



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