Uma família de fé e tradição afro-baiana: a família Santana – Primeira parte.
1. Miguel Santana
O conheci
nos anos 70 do século passado, no então órgão responsável pela restauração
arquitetônica e promoção social dos moradores da área do Pelourinho/Maciel:
Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Tempos difíceis devido à
ditadura militar, mas também tempos de utopias e vontade de construção de um novo país. Sob a direção de Vivaldo da Costa Lima,
exercíamos, na Coordenação de Planejamento e Pesquisa Social, capitaneados por
Gey Espinheira, uma perspectiva existencial e profissional “revolucionária”.
Jovens sonhadores. Voltemos a Miguel Santana: um dia Vivaldo chamou José
Guilherme da Cunha Castro e apresentou um senhor de idade avançada e disse-lhe “faça uma história de vida dele”.
Pouco Vivaldo passou a Guilherme sobre a importância social e religiosa do
personagem. Ele encantou a todos nós, meninos de 20 anos, por sua jovialidade, onde entrava a ironia –
provavelmente por nossa ignorância – e o deboche. Quando apareceu uma bela
americana para nos ensinar inglês, ele perguntou logo: “quem tá pegando ela,
uma mulher dessa não pode ficar sozinha, é uma desmoralização para a Bahia” e
deu uma gostosa gargalhada. Logo depois
passou a contar a sua história com uma escandinava; quando viu, ficou doido,
começou a conversar e disse que ia fazer um filho nela. Ela botou a mão na
barriga e disse “aqui”? Ele retrucou, “aí mesmo”. Ela foi embora grávida, com
um bacuri no ventre do mulato baiano. Essa história vai aparecer em Tenda dos
Milagres, de Jorge Amado.
Guilherme fez um belo trabalho, nos
limites do nosso conhecimento de então. Pena que nada sabíamos sobre o
candomblé e a história do porto de Salvador. Entretanto, permanece um documento
ímpar, republicado em 1996, pela Edufba, Câmara Municipal e Governo do Estado,
com o acréscimo da apresentação e notas minhas e de Vivaldo da Costa Lima, de
um valioso depoimento de sua filha
Jaguaracira, elogiado por Jorge Amado, e fotografias de diversos momentos da vida
familiar. Miguel Santana nasceu em 29 de setembro de 1897, sua avó materna, era
filha de um dos reis de Tapa, a avó paterna era de Gana; seus pais,
brasileiros, João Faustino era ferreiro
e sua mãe, Adelina era modista. Viveu desde cedo com a família de João de Adão,
um protagonista da história inicial do Sindicato dos Estivadores; enriqueceu no
porto, perdendo tudo com a construção das rodovias. Sem contar a sua
generosidade excessiva com os que a ele acorriam. Lá está na Cidade das
Mulheres, de Ruth Landes, chegando ao Bonfim de automóvel, por ela identificado
como um homem abastado. Jovem ainda tornou-se o único sacerdote do culto a
Indakô, recebendo o alto posto de Zabá,
no terreiro da nação Tapa, no Gunocô ( hoje vale do Bonocô); ogan da Casa
Branca, tinha posto no culto dos Eguns e
era Obá Aré, no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Pode-se ver a sua importância, por
ser o único Obá no leito de morte de Aninha, para fazer cumprir os seus desejos.
Mesmo pobre no final de sua vida, quando chegava a qualquer terreiro era
homenageado. Hoje, onde apresenta-se o Ballet Folclórico da Bahia, é o Teatro
Miguel Santana, justa homenagem do seu grande amigo Vivaldo da Costa Lima,
então Diretor da Fundação do Patrimônio. Pena não existir nada no teatro
dizendo quem foi Miguel Santana. Foi para o Orum em 1974. O trabalho de José
Guilherme, esgotado, merece, sem dúvidas, uma nova edição.
2. Jaguaracira Devezas de Sant´Anna
Ainda na Fundação do Patrimônio conheci ligeiramente um dos
netos de Miguel Santana, Paulo Sobrinho. Anos depois fomos nos encontrar no
escritório político de Ruy Bacelar, meu primo em primeiro grau, deputado
federal que se tornaria Senador. Ligado
ao Assessor de Ruy, João Carlos Bacelar,
sobrinho de Ruy e filho de minha prima Joanice, irmã de Ruy, tornamo-nos grandes amigos. Com a eleição de
Ruy como Senador, e depois com a eleição de João Carlos para a Câmara
Municipal, a nossa amizade se consolidou e passamos a conhecer e frequentar
mutuamente as casas de nossas famílias. Aí conheci a sua mãe, Dona Jaguaracira,
gostei muito dela, por sua gentileza e por lembrar em muito a minha mãe. Com a
minha ida para o Centro de Estudos Afro-Orientais, da UFBA, aproximei-me, além dos membros de sua
família, do povo do Afonjá e dos membros do Asipá, culto dos Eguns. Nasceu daí também
uma grande amizade com Mestre Didi, talvez por ele nunca ter visto eu fazer uma
pergunta sobre religião, gostávamos mesmo era de brincadeiras e gozações. E,
assim por minha admiração sobre seu trabalho, o indiquei para ser Doutor
Honoris Causa da UFBA, pelo Ceao e Departamento de Antropologia.
Portanto, foi com muita alegria que
recebi o lançamento do livro de Dona Jaguaracira, intitulado Um presente de Xangô: minhas memórias (
Salvador: Editorial Iyamodé, 2014), que por meu afazeres só agora posso
comentar. Embora a oralidade seja uma marca sobre o candomblé, a escritura
sempre esteve presente, como nos demonstrou a especialista em estudos
afro-brasileiros Lisa Castillo, em belo livro sobre a temática publicado pela
EDUFBA. Entretanto, publicamente, os escritos do povo-de-santo tiveram seu
início com o pequeno dicionário de iorubá, fruto do curso efetivado no CEAO –
pouco conhecido – e com o livro sobre a história do Axé Opô Afonjá, ambos de
autoria de Mestre Didi. Depois veio Mãe Stella, demonstrando que seu tempo é
agora, seguido de contínuas publicações. Recentemente tivemos os livros de Mãe
Valnizia. Além disso, Mãe Stella abriu espaço para uma coluna contínua no
Jornal A Tarde, onde deixou por cansaço, sendo seguida por Mãe Valnizia até os
dias de hoje. Lições do viver, da generosidade, do ecumenismo, do verdadeiro
humanismo.
É nesse caminho que entra a nossa
autora, sob o prisma da memória.
Olhando o clássico trabalho de
Maurice Halbwachs, A memória coletiva,
observei que a sua divisão poderia ser aplicada
ao trabalho de Jaguaracira Santana: memória coletiva e individual; memória
coletiva e histórica; memória coletiva e o tempo; memória coletiva e o espaço.
No seu prefácio, Jean Duvignaud diz que nele encontramos os elementos de uma
sociologia da vida cotidiana. Segundo Ecléa Bósi, que publicizou a importância
dos estudos sobre a memória no Brasil, a memória dos velhos pode ser trabalhada
como um mediador entre a nossa geração e os testemunhos do passado. Ela é o
intermediário informal da cultura, na medida em que os mediadores formalizados
já possuem as suas instituições, dos Institutos Históricos às Universidades.
Nas memórias de nossa autora, como diz
a mesma Bosi, a casa materna aparece como o centro geométrico do mundo e a
cidade cresce a partir dela em várias direções. Dela partem as ruas, as
calçadas, as festas, e o espaço do terreiro, fundamental na sua vida. Na sua biografia, Jaguaracira traça a sua
árvore genealógica, demonstrando a nossa mestiçagem e a ligação com a África. Elabora
uma pequena história da vida dos seus pais, privilegiando nele o campo do
trabalho, e na sua mãe o espaço
doméstico. Fala da sua vida na casa da família de origem – o grupo doméstico
ultrapassava a família – no Rio Vermelho, onde a religiosidade afro-baiana já
era uma marca, e das festas no bairro, destacando as transformações de forma
saudosa.
A partir daí narra, o
nascimento, o aniversário inesquecível
ao fazer um ano de vida, sua infância e adolescência, a bela festa de quinze
anos, a formatura na Fundação Visconde de Cayru, as relações da família com a igreja
católica, inclusive com seu batismo e comunhão. Importante destacar seus
vínculos com o candomblé, sendo seu pai
Obá Aré e sua mãe Teobolá, postos importantes no Axé Opô Afonjá. Mãe
Aninha, após Miguel Santana presentear Xangô com dois carneiros, disse-lhe que
o orixá havia aceito o presente e iria ofertar-lhe um presente “que andava e
falava”. Nada como o dom e o contradom, para reafirmar os laços entre os homens
e os deuses. Como sua esposa já tinha
mais de 40 anos, não acreditou que fosse dela o filho, mas ela começou a ficar
doente e os médicos disseram que era mioma. Quando já estava com a data da
operação marcada, uma Cabocla se manifestou em uma comadre de sua mãe, e
disse-lhe que ela não devia ser operada, pois estava grávida: com nove meses eu
nasceria. Fez sua exigência, pediu que colocasse o nome dela: Jaguaracira. Com
nove anos, com a participação de Mãe Senhora, que foi em sua casa, ela assentou
os orixás Oxalá e Oxum. Fora o Itá de
Xangô onde seu pai ofertava um carneiro, todas as quartas-feiras ia para o Axé
Opô Afonjá fazer o amalá de Xangô.
Porém, apesar de Mãe Senhora alertar seu pai que ela precisava ser
adoxu, ele não aceitava. Dizia que na sua família ninguém raspava cabeça, só
precisava assentar e pronto. Teve um belo casamento com Jurandy, contador na
firma de seu pai e viveu alguns anos de felicidade. Contudo, quando a empresa de Miguel Santana fechou e
ele foi trabalhar em uma firma inglesa, começaram os desentendimentos. Entre um
dos fatores estava a religião, o que culminou na separação. Teve seis filhos:
Jandy – não cheguei a conhecer, devido ao seu falecimento cedo – José, Paulo,
(Jurandy)(Júnior, Juracira e Lidia. Todos vinculados à religião afro-baiana.
Mas, os orixás não a perdoaram, com muitos anos de sofrimento, doenças, o
casamento que não deu certo. A Oxum de Mãe Senhora avisou que seu casamento não
daria certo. Quando voltou frequentar o Opô Afonjá, Mãe Stella, disse-lhe que
havia sonhado com seu pai, pedindo para tomar conta dela e que ela precisava
ser iniciada se quisesse continuar viva. Assim o fez, sendo hoje Ebomi no Axé
Opô Afonjá e Iya Modé no Ilê Asipá, terreiro dos Eguns. Por ironia do destino,
os orixás escolheram também sua filha caçula, Lidia, a qual, assim como a mãe, sofreu no corpo a
demora em atende-los. Com a sua “feitura” ( iniciação ) por Mãe Stella, ela
dissipou seus problemas físicos, tornando-se filha de Oya Igbale. Todos os seus
filhos tinham ligação com a religião: José, tornou-se Ojé, ainda no terreiro de
eguns Ilê Agboula e com a fundação do Ilê Asipá, do Alapini Mestre Didi, em
Salvador, para lá transferiu-se, fazendo parte do Corpo de Ojés, tornando-se
depois Ossi Alagbá; Paulo, além de Ojé no Asipá, hoje ocupa o importante posto
que foi de seu avô, é Obá Aré, no Afonjá; Júnior é Ogan do Afonjá; (Jura)Cira é
filha de Oxum com Xangô no Afonjá. Com orgulho fala dos seus filhos ( dando
destaque – natural, conforme veremos em breve
– a José Santana), netos e bisnetos. A mestiçagem permanece como uma
marca do grupo de parentesco, do século XIX até os dias de hoje.
Foram marcantes para sua vida as viagens
que efetivou para ver suas filhas. Faria em 1998 sua primeira viagem para a
Espanha para ver Cira, casada com o espanhol Daniel, para acompanhar o
nascimento do seu primeiro filho. Ela morava na Costa Brava, perto de
Barcelona. Aproveitou, enquanto a criança não nascia, para passear por
Barcelona e fizeram uma excursão à Galicia. A sua narrativa sobre os lugares e
características são deliciosas. Em 2003, retornou à Espanha, sofreu com o
inverno europeu, porém, isso não a impediu de ir à França. Quando retornou, no
fim de março, sua filha Lidia, casada com Wanderson, tenente da Aeronáutica,
foi morar em Manaus. Ali passou seis meses e adorou as diferenças em relação a
Salvador. Em 2005, Wanderson foi transferido para Natal, no Rio Grande do
Norte, e Jaguaracira os visitou em 2005/2006/2007, oferecendo uma visão
perfeita dos seus sítios e sua beleza natural. Com nova transferência de
Wanderson para Porto Velho, lá estava ela em Rondônia, na fronteira com a Bolívia.
Gostou muito da pequena cidade, por suas ruas arborizadas e asfaltadas e um
comércio muito mais barato que Salvador, na cidade e na Bolívia. Todos esses
momentos foram inesquecíveis, de alegria e felicidade.
Sobre as datas de celebração da
família, fica evidente que parte delas se referem ao seu pai ainda em vida, um
dos membros da “elite de cor”, de Thales de Azevedo. Nas festas católicas, lá estava a família
Santana, evidenciando pelas roupas, carro e conhecimento do patriarca, o seu
status: a festa de Nossa Senhora da Conceição da Praia; a procissão de Bom
Jesus dos Navegantes acompanhada na lancha da família; a festa do Senhor do
Bonfim, onde Ruth Landes o viu; a Sexta-Feira Santa; a trezena de Santo Antônio
e a grande festa de 29 de setembro, data de nascimento do seu pai. Tudo começava com uma missa na igreja da
Conceição da Praia, em louvor a São Miguel, pela passagem do aniversário de
Miguel Santana. Depois vinham as obrigações para os orixás, havia um caruru e
seu pai contratava uma orquestra para tocar, conhecida como Brazilian Boys. No
dia seguinte ainda havia festa, pois sua mãe distribuía as comidas do quarto do
santo para o povo. Mais adiante, irá falar da sua amizade com Mestre Didi; da
formatura de Lidia, em Pedagogia; dos seus 70 anos, em 2 de fevereiro de 2009;
da confirmação de Genaldo Novaes como ogan no Afonjá, além de ser Alabá do Ilê
Asipá, neto de Paizinho, uma das figuras importantes no culto dos eguns e
descendente de Marcos Pimentel que trouxe da África Babá Olokotun; a
confirmação de Paulo como Oba Aré, posto que pertencia ao seu avô, no dia 2 de
julho de 2011.
Na segunda parte do livro, ela
começa falando das suas “perdas inesquecíveis”: do seu irmão e afilhado, Marcos
Máximo, conhecido como Timóteo; do seu outro irmão Jaguaracy; do seu ex-marido,
Jurandy; de Mãe Georgete e da mais traumática de todas, a “passagem” de seu filho José, ainda jovem,
uma dor e saudade que nunca passarão. Talvez o que alivie um pouco o seu
sofrimento seja a religião, pois sabe que o “verá” como um dos eguns do
Asipá. Além de José, eu tinha em Timóteo um grande amigo. Ele
proporcionou-me a participação em uma obrigação em sua casa, com “santo
assentado”, que começou na madrugada – evidentemente não vi – com a matança dos
bichos e os rituais atinentes, começando a partir do meio dia (ou antes) a
festa profana, com bebida e uma lauta feijoada. À noite, assisti um verdadeiro potlatch, com as vestes
cerimoniais, cânticos e uma profusão incontável de gamelas para os orixás.
Terminada a cerimônia, foi servido ainda um caruru. Foi para mim, uma das
experiências inesquecíveis na religião afro-baiana. Adiante, Jaguaracira fala
da perda de Mestre Didi, inesquecível como amigo, figura humana e líder religioso.
Generosa, abre um espaço só para
agradecimentos. Para não cansar o leitor, parte de Miguel Santana, passa por
Mãe Stella, Mãe Georgete, Marco Aurélio Luz, Jorge Amado , Vivaldo da Costa,
José Guilherme Cunha, Mãe Senhora, Mestre Didi e ao povo da religião
afro-baiana em geral. E não esquece do centenário de Irmã Dulce, em 2014, para ela já uma santa.
De forma simples e didática, mostra
as funções e atribuições de um terreiro de culto aos ancestrais ( eguns), a
partir do seu entendimento como Iya Modé, no Asipá. E conclui seu trabalho, com fotos e ilustrações
de sua família e figuras proeminentes da religião afro-baiana.
As suas memórias retratam uma
personagem singular, onde através da sua narrativa vemos a sua grandeza e
generosidade, nada de mágoas ou ressentimentos, ao mesmo tempo em que ela
ilumina sua história familiar, entrelaçada com a história da religião
afro-baiana e das transformações sociais.
Concluo, com a sua sábia advertência: “A
contemporaneidade corta laços de amizade e destrói sentimentos de afetividade
profunda”. Felizmente, existem ainda
pessoas como Jaguaracira Santana e sua família, mantendo com seus parentes e
amigos, sólidos vínculos de solidariedade, amizade e humanismo.