A Culinária Caipira da Paulistânia

                                       
Progressivamente, Carlos Alberto Dória vem construindo no Brasil uma obra das mais significativas na área da alimentação. Agora, com um parceiro de alto nível, dono do restaurante Jiquitaia, alfabetizado, cônscio do saber-fazer, Marcelo Corrêa Bastos, nos apresenta A história e as receitas de um modo antigo de comer, com o título principal A Culinária Caipira da Paulistânia ( São Paulo: Três Estrelas, 2018). Apareceu em dezembro de 2018, entre os mais vendidos no Brasil, embora isso pouco diga para mim – é apenas constatação, não valorização – e sei que para Dória também.
O considero uma continuidade da tese que já vinha esposando no instigante  A Formação da Culinária Brasileira ( São Paulo: Três Estrelas, 2014 ), ou seja, o mito das cozinhas regionais. No  livro aqui abordado, eles particularizam a abordagem em torno da cozinha paulista do sertão , a caipira, que abrangia historicamente e geograficamente uma vasta área até a sua transformação ditada pelas políticas estatais, através do turismo, em cozinha mineira. 
Livro denso, a merecer ampla resenha, distante das poucas linhas, diria didáticas, não analíticas, que elaborei sobre o mesmo. Caipira, segundo os autores, é gente afeita na lida com o mato, com o os roçados. Gente e cultura estigmatizada pelo povo citadino. Enquanto a expressão Paulistânia, que apareceu com outros objetivos em Alfredo Ellis, a partir de 1930, abrange o que é hoje São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, parte do Rio de Janeiro e Espírito Santo, até a região das missões no Rio Grande do Sul. Portanto, abarcando grande parte do que hoje chamamos Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Conforme os autores, privilegiando os elementos comuns, essa geografia culinária foi alcançada pela produção de subsistência, baseada em elementos calcados na cultura dos índios guaranis, que predominavam originalmente nesse território. Uma agricultura de elementos nativos, como o milho, o feijão, a abóbora, e aquilo que se pode criar a partir do milho – as galinhas, os porcos – formaram a base da alimentação desse vasto território. Evidentemente, a flora, a fauna e as razões históricas viriam a constituir as diferenças na Paulistânia.
Começam mostrando a importância da culinária dos guaranis, com a preponderância do milho, sendo o ponto de partida da cozinha caipira. No seu caminhar, avançam para  as modernas concepções sobre as sociedades indígenas e a floresta.
Ao abordar os bandeirantes, demostram a sua origem, a sua grande expansão e as fases históricas de ocupação. Concluem, melancolicamente, asseverando que o que sobrou da cultura caipira é mais imaginária ou ideológica, que real. E que sua culinária foi sendo abandonada, engolida pela comida industrializada, pelos hábitos dos imigrantes europeus, e pelo desprezo em relação ao nosso passado indígena e à alimentação do sertão.
Continuando, os autores se fixam na formação e no desenvolvimento das unidades de produção familiar, responsáveis pela agricultura de subsistência: o sítio. Com o esgotamento do ouro, o recurso foi partir para a agricultura. E ela espalhou sua cultura, ampliando o espaço ocupado por sítios e fazendas especializados na alimentação de subsistência. Relacionando o sítio e o caipira, caminhamos porteira a dentro até atingir a sua cozinha. E, concluindo a temática, vamos ao que chamaria uma etnografia dos produtos do sitio que ganharam cidadania. Começa com o levantamento do engenheiro Huascar Pereira, com 13 plantas comestíveis, nas suas várias espécies, do amendoim às pimentas. Do sintético passa à  grande riqueza de informações, históricas e culinárias: o trato do milho, o feijão, o arroz, a mandioca, a banha e as gorduras substitutas, e conclui com o consumo na cidade. E atentam para as transformações ocorridas, com grandes impactos sobre a culinária caipira.   
Na segunda parte do livro, mostram a cozinha dos caipiras, contadas por seus ingredientes e modos de fazer. Inicia dizendo que o objetivo nesta parte do trabalho é apresentar o que se comia no mundo caipira antes do seus declínio, no século XX. Analisa a questão das receitas e avança para a sua reflexão inovadora sobre o sistema de classificação de pratos da tradição brasileira. E a partir daí, com sugestivos comentários de Marcelo Corrêa Bastos, eles nos trazem de volta a culinária caipira. É um caminho longo, demonstrando a pesquisa dos autores, mas sem cansar o leitor, antes, alimentando-o de sonhos, do que já quase não existe: o desjejum ou café da manhã, os cozidões, as caças, o milho, o arroz, o feijão, as conservas, os refogados, os mexidos ou lobozós, as  farofas e paçocas, as frituras, as empadas e tortas, biscoitos, sequilhos e rosquinhas, pães e roscas.  É texto de cabeceira, para sempre ser consultado, sobretudo para avaliar as semelhanças e diferenças em relação à culinária em outros espaços da sociedade brasileira.
Concluem o livro fazendo uma revisão crítica da presença do regionalismo, trazendo à tona alguns autores fundamentais, enfatizando sobretudo as relações entre os paulistas e os mineiros. Ressaltam que não existe diferença notável entre a cozinha mineira  e a tradicional paulista: o que existe são atitudes diferentes de mineiros e paulistas diante da culinária paulista. O mineiro a tem como patrimônio, isto é um passado que deveria persistir no presente, enquanto o paulista, em especial, o paulistano, a tem como comida de pobre, desprezível, a ponto de dizerem que não possuem uma cozinha tradicional.
Li com atenção e calma, afinal é um livro com várias nuances e merecedor de amplas discussões por seu consistente conteúdo, indispensável para todos que se interessam pelo que foi e os rumos da culinária brasileira.
 

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