A DOÇURA NO SAL

Para Emily Chaves
Desde pequena eu ouvi dizer que comida é feita para alimentar a alma, depois para alimentar o corpo”


Emily escreveu um paper para o meu curso sobre Alimentação e eu gostei muito, começando com o período acima. Era sobre o livro de Mabel Veloso, “O SAL É UM DOM. RECEITAS DE MÃE CANÔ. ( Apresentações de Maria Betânia e Vivaldo da Costa Lima. Fotografias de Maria Sampaio. Salvador: Corrupio; Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008 )
Talvez já tenha mais de 20 anos quando conheci Mabel Veloso. Ela escreveu um pequeno e emocionante livro, quase uma autobiografia, mas também uma história da sua família, onde meu querido amigo Gustavo Falcón, pediu-me para fazer a orelha do JANELAS. Ao contrário do que esperava antes que um favor ao amigo, fiquei orgulhoso de participar do livro, infelizmente esgotado. Tornamo-nos, embora à distância, cordiais amigos, com encontros calorosos. Ela continuou escrevendo, e assim como a sua amizade, sempre com beleza e doçura. A admiração tornou-se constante. Um livro que merece um prefácio de Vivaldo Costa Lima e o apoio da irmã, já é uma recomendação. A doçura de Mabel nada tem a ver com o título do livro; ele nasceu da questão levantada por telefone de um filho de Dona Canô que perguntou quanto deveria usar de sal e ela respondeu “meu filho, o sal é um dom”.
É um livro muito bem elaborado graficamente, contando com as fotos da talentosa Maria Sampaio. Eu diria que o livro é dividido em duas partes. Uma primeira, apresentando uma família de classe média do Recôncavo, da cidade de Santo Amaro. Uma família tradicional, matricentrada ou matrifocada no âmbito da casa, com papéis definidos, mesmo com seu Zeca vivo, marido de Dona Canô, e que se manteria mesmo após o seu descanso eterno. Provavelmente, após a sua despedida, o seu poder aumentou. Mesmo com filhos “revolucionários”, ela manteve o controle sobre a “mesa” em sentido amplo, com o domínio sobre o menu – sem deixar de atender às preferências individuais, como a de Caetano Veloso – o horário e os lugares na mesa. Mas, a alimentação envolve muito mais, por exemplo, a família concede grande destaque aos produtos adquiridos in natura, na Feira de Santo Amaro, hoje fundamental para os grandes chefes. Mas, o principal viria a seguir: a comida de Dona Canô, com suas receitas. Comida caseira, simples, com pratos maravilhosos. A mesa sempre aumentava na época de Semana Santa, na festa de Nossa Senhora da Purificação e nos aniversários, com parentes, amigos e aderentes.
A lembrança do fogão á lenha, a limpeza das panelas, com areia, cinza e sabão. A sabedoria de Mabel, a distinguir o apetite da fome. Apetite é a vontade de comer, é alegria de esperar o chamado: está na mesa! Fome, é vontade de comer, sem esperança. Comer é benção. Não lembrava do caderno de receitas em casa: a quantidade, o peso e as medidas, tudo era guardado na memória. Com orgulho, Mabel diz: nunca nada desandou ou solou na cozinha de Dona Canô.
Cada dia a cozinha espalhava um cheiro diferente. Sábado, o cheiro da feijoada preparada de véspera para o dia de domingo. Quarta e sexta-feira, o cheiro vinha enfeitado com azeite de dendê: dias de comer peixe e mariscos. Nos outros dias , novas fumaças perfumadas de ensopados, frituras, omeletes, bolinhos de carne. Ressalta, comida que não cheira não tem gosto.
Difícil falar de todas receitas, sem cansá-los, apenas tocarei com rapidez, como, por exemplo, nas moquecas caseiras: de ovos, de mapé ( marisco), de caju, de bolachão, hoje encontradas em “antigas casas” ou já desaparecidas. Ah, como esquecer das várias formas de farofa, com a farinha, infelizmente, já tão desprestigiada nas camadas médias e altas: d´água, de azeite-de-dendê, de banana, de mel, de toucinho e de sabiá. Não esquecer o chuchu de capote, do bolinho de fruta pão, da banana da terra frita, complemento – por exemplo, nos carurus de setembro – ou delicioso snack. As sopas: a comum, com carne e massa de letrinha, a juliana, sem massa, substituída por cenoura, chuchu, batata, abóbora; e as que seguem a denominação: batata, cebola e abóbora. As várias formas de preparação de galinha: assada, molho pardo, xinxin, bife de galinha, bife de galinha à milanesa. A frigideira de repolho, de maturi e verdura, onde, nelas, despontava o camarão seco, as frigideiras de siri e caju à moda da casa.
A maniçoba, com o uso da folha de aipim, segundo Mabel, a comida que tem a cara do Recôncavo. Penso que pode ser a cara do Recôncavo de hoje, empobrecido culinariamente, sobretudo pelo parco turismo. O caruru e a “cara da velha”: deixar cozinhar bem, aí a comida vai encolhendo, ficando enrugada. O caruru de folha, o efó, o vatapá. O escaldado de caranguejo, o escaldado de siri, o bobó de camarão, sarapatel, rabada, carne de fumeiro, maxixada, quiabada. Amor em pedaços: pedaços de músculo temperados; roupa velha, roupa velha de carne de sertão, pirão de leite, lombo ferrugem, feito com o pedaço do boi que chamamos de “paulista”. As comidas do São João, os doces de compotas, muitos, a variedade de bolos.
O registro feito por Mabel é da maior importância, pois muito da comida de Dona Canô desaparecerá, agora poderá ser copiado pelos chefs de cozinha. Mas, com certeza faltará a doçura de Mabel e o “dom do sal” de Dona Canô.

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