A COMIDA DO DIABO
As drogas sempre alimentaram o corpo ou o espírito.
Crack é melhor que uma trepada. (Usuário)
UFBA, sendo autor da tese um psiquiatra,
Esdras Cabus Moreira, denominada A
Toxicomania e a Metrópole: uso de crack na cidade de Salvador. A
sua pesquisa foi
realizada no Centro de Estudos e Terapia do
Abuso de Drogas (CETAD), vinculado à
UFBA e à Secretaria de Saúde do
Estado da Bahia, local de seu trabalho,
já de há muito
tempo.
Utilizou para a realização da pesquisa, sete
usuários de crack atendidos no CETAD,
gastando em torno de 25 horas de entrevistas,
informações da mídia escrita, além das
observações
de outros usuários nos últimos cinco anos. Metodologias à parte, o
fundamental são as considerações que traz
sobre a “inalação do vapor produzido por
cristais duros de cocaína”. O crack, afirma
Esdras, não é uma droga nova, mas um novo
sistema de liberação da cocaína, sendo fumada,
o que não ocorre com o seu sal. Sua
absorção
pelos pulmões é extremamente rápida, garantindo um efeito imediato no
cérebro,
entre 10 a 15 segundos. Porém, o seu efeito só dura de 5 a 10 minutos, daí que,
o intenso
prazer, associado ao encurtamento do seu efeito, fazem o usuário tender a uma
repetição
frenética do seu consumo. A extrema compulsão para a repetição – a
“fissura”- associada às dificuldades sociais
geradas, favorecem a ocorrência de
atividades
ilícitas para a obtenção da droga. “Vale tudo” para a manutenção do uso: da
venda de
pertences próprios e da família, do roubo, do sequestro, da prostituição. Vale
até vender o
vaso sanitário, só não vale dever ao traficante: paga ou morre, como uma
questão de
honra para o traficante.
Assim como
nos USA, o crack predomina nas áreas
pobres das cidades, cujas práticas
de consumo e comercialização, tornam-se
integradas aos processos sociais locais.
A
crescente difusão da venda do crack obedece a
uma lógica de mercado: foi uma
estratégia
dos traficantes que preferiram
comercializar essa substância pelo seu
potencial de dependência, baixo preço por
unidade (“pedra”) e o fácil manejo da droga.
Ele explica
que mesmo valendo-se do fluxo veloz de saída da mercadoria, de forma
ritualizada,
os traficantes e usuários sabem que determinados comportamentos quando
ultrapassam o limite do determinado, expõem a
“boca” à ação da Polícia e aos valores
locais. O crack, chegou em São Paulo nos
inícios dos anos 90 do século 20, e logo após
ingressava em
Salvador. É uma droga dos abandonados do sistema, os que chegam ao
“fundo do
poço” da marginalização social, na medida em que não são aceitos nem
mesmo nas
áreas de pobreza. Como diz o autor, “seus corpos não representam nada,
não há
potencial de inserção no mercado de trabalho. Individualmente são inúteis.
Coletivamente não existem”. A atenção dada pela mídia às “cracolândias”,
com
indivíduos sujos, deitados e
jogados nas ruas, com comportamento errático e recusando
qualquer abordagem dos poderes
públicos, fazem do crack a encarnação do mal. Pior:
disseminam uma imagem equivocada
de epidemia. Para Esdras, a satanização
da
droga, dos seus usuários e os esforços para
que sejam eliminados do cenário da cidade,
atendem a uma visão higienista, buscando uma totalidade organizada, uma
homogeneização dos espaços, para
a circulação dos “cidadãos do mundo”.
Ao tratar do uso do crack na cidade de Salvador, ele se utiliza das
“histórias de vida”,
relatos etnográficos cheios de
“carne e sangue, onde o sofrimento é a marca das
narrativas. Chocantes,
dramáticas, onde a estigmatização que encontram reforça o seu
afastamento da humanidade.
Desprezados pela sociedade mais ampla,
repudiado pelos
familiares e amigos, quando
atingem a categoria de “noiado” – dependente total – são
discriminados pelos traficantes.
Sem vida social, acorda pensando em como
vai
conseguir uma pedra, como alerta
um dos entrevistados: “Quem fuma crack, vive só
para o crack. Ele gera um modelo
que fortalece o individualismo, mas eu o chamaria de
individualismo anômico, isolado
do seu contexto social, distante do individualismo e
ideologia individualista das classes médias.
A experiência com o espaço é
modificado pela relação com a droga. A geografia da
cidade se transforma num
conjunto homogêneo para o usuário. Como assinala o autor,
“seu corpo, transformado pela fissura, vive
uma fantasia de onipotência que torna o
espaço isotrópico e sem
qualidades”. A ausência da droga traz desconforto intenso
e o faz
priorizar o consumo do seu produto, movendo-se para alcançar seu objetivo,
desconsiderando
as dinâmicas sociais mais cotidianas. Na “fissura”, o indivíduo
percebe o
risco, reconhece os lugares sinistros na madrugada, o perigo e a ameaça
em cada
“boca”; mas, a sua “experiência profunda desses espaços é negada pelo desejo
incontrolável,
quase inumano, que destitui valores e simbolismos dos lugares,
uniformizando-os
em função dessa busca. É o que o autor chama de espaço da
conveniência
Ele “torna-se indiferente ao espaço, melhor, o toma pela pedra e a pedra
por ele”. O segundo caminho para o autor, é o espaço de
resistência: onde os sujeitos
tem as suas
práticas perpassadas pelas práticas locais do tráfico, aproximando-os das
questões dos
grupos de traficantes. Aí, o seu destino pode estar no beco ou numa casa,
seja no
sentido de uma recaída, na possibilidade de ser vítima das disputas internas do
tráfico ou
das ações policiais.
Na sua
relação com tempo, o futuro é visto como um presente eterno. Um
estado de coisas que não permite que se volte
a um tempo histórico
real, a uma
abertura para o outro, para a mudança e a utopia, conforme Jameson.
Esdras
alerta, que quando se concebe o crack como mercadoria ilícita, como
representação
do crime que deve ser extirpado da sociedade, devendo ser eliminado
por técnicas
higienistas e repressivas, reduz-se o espaço urbano a facilitador do
consumo e a
um campo de práticas de poder totalitárias. Isso enfraquece a cidade
como um corpo
político coletivo; o espaço público torna-se cada vez mais restrito
a uma elite
econômica e social que dá forma à cidade, vislumbrando-a segregada,
na direção
dos seus próprios desejos.
A droga,
especificamente o seu comércio, é parte da resposta dada por uma cidade
informal,
desassistida, alijada pelo Estado da incorporação à sociedade de consumo
pela
educação e
pelo trabalho, que termina por
intensificar as desigualdades existentes;
justificando,
assim, as condutas draconianas de um Estado que passa a responsabilizar
o crack por
seus desacertos.
Heterodoxo,
“procura sarna para se coçar”, ao dizer que hoje o sistema econômico
busca uma
neutralidade nas relações sociais , incorporando grupos variados – negros,
mulheres,
homossexuais – pois, a ênfase na assimilação da diversidade, enfraquece
as discussões
que problematizam a desigualdade gerada pela distribuição dos recursos
da sociedade.
Avança, atacando o que seria fundamental para o usuário e o traficante
não gerarem a
descontinuidade do espaço público: políticas de inclusão. Porém, ressalta,
não interessa
ao Estado intervir no problema, na medida que significaria melhorar a
qualidade de
vida e estar presente em grande parte da cidade que vive na informalidade.
Assinala que
o crack vem diminuindo nos USA, com a inserção de drogas de menor
risco, menos
associada ao submundo e mais facilmente incorporada ao dia a dia, como
as
semelhantes às anfetaminas. Prognostica, que no futuro, lidaremos com drogas
produzidas em
qualquer parte do mundo, com componentes químicos mais baratos,
vendidos em
qualquer lugar, com substâncias que permitam uma identificação com
as atividades
do individuo e as necessidades do seu grupo, sem as rupturas do crack. E,
essa lição podemos aprender com a indústria
farmacêutica de medicamentos
psicoativos,
como os antidepressivos.
Concluindo,
em determinado ponto do texto, alude ao tratamento do crack, não com
fórmulas
mágicas, mas sim, vendo que “a solução para o drama social do crack, não
estará na
contenção física do crack, mas no retorno à humanidade que se perde em cada
nova forma de
incorporação de tecnologias de controle da vida humana. E que o
usuário, “só
retornará a uma existência plenamente humana, quando perceber de novo
a sua
angústia de forma mais ampla e profunda, ao se deslocar da droga, como a sua
única
mediação com a vida.
Esdras Cabus
Moreira, produziu uma tese de referência para os estudos sobre o crack,
com uma
bibliografia, marcada pelo ecletismo, saudável e consistente, com o uso da
literatura
como forma de tradução da realidade e ajudado pelo uso magistral da escrita.
Espero que
venha a ser transformada em livro. Ah, ia esquecendo, à Sartre, o diabo são
os Outros.