Candomblé da Bahia: a cidade das mulheres e dos homens.
Júlio
Braga, antropólogo e babalaô, além de ser um dos grandes mestres da
antropologia afro-brasileira, é meu amigo de fé por mais de 40 anos. Com ele tive
muitas alegrias e alguns poucos dissabores hilários. Por exemplo, ele me fez
ir a Pisa, pois a torre podia cair, e
ele não teria como explicar ao povo do Largo do Tanque e eu ao da Boca do Rio,
que não tínhamos visto. E por isso,
deixei de ir à bela Siena. Imperdoável. Coisas desse tipo. Ele foi um homem
sempre fiel às suas mulheres: como ele próprio se diz, é um “monógamo
sucessivo” incorrigível. Enfim, eu já não sei contar os seus casamentos e
filhos, por isso, seus contracheques são verdadeiras folhas corridas de tanta
pensão. Agora, ele me anunciou que vai casar – e vai ser chique o casamento –
no dia 18 de dezembro do corrente ano. Além de eu esperar que seja o último,
falar sobre seu futuro livro será o meu presente de casamento.
Desde
o hoje célebre livro de Ruth Landes, The City of Women, além da projeção midiática nas últimas décadas
de eminentes mães-de-santo, ganhou realce, em especial no plano do senso comum,
o candomblé como uma “cidade das mulheres”.
É exatamente para afirmar que o candomblé é uma sociedade de mulheres e
de homens, tendo de forma implícita ou explicita, como fio condutor da
narrativa o famoso babalaô Matiniano Eliseu do Bonfim, que aparece este
provocativo trabalho de pesquisador, pelo aporte argumentativo do texto, do
experimentado antropólogo.
Assim,
após a devida introdução ao objeto, o texto analisa a presença de Edison Carneiro e sua
importância para a religião afro-brasileira. De uma forma geral, nada de novo
nos diz, se fizermos uma leitura literal. Porém, há uma intenção implícita – e
que termina por se explicitar – é que a para a autora de The City of Women,
Carneiro foi mais que um guia e auxiliar de pesquisa, tendo grande participação
nas interpretações da bela e jovem antropóloga. A sua compreensão em torno da
questão de gênero, o seu etnocentrismo religioso e os seus preconceitos
terminam por guiar a pena da norte-americana. Aliás, Ruth Landes teve um vida conturbada:
primeiro foi estigmatizada pelo establishment acadêmico norte-americano; já no
fim da vida é descoberta como pós-moderna e ícone do feminismo; agora, aparece esta
pesquisa trazendo outros elementos para
a sua obra.
Após a introdução, vemos um intrigante texto
envolvendo um manuscrito seminal, desdobrado em várias obras, cuja discussão em torno da sua autoria na
Academia foi aberta por Lisa Castilho. É um artigo imperdível para todos que se
interessam pela história, mitos e mentiras da religião afro-brasileira. Somente
um autor consagrado e que já enfrentou tantos desafios epistemológicos poderia se debruçar sobre investigação de
tema tão polêmico envolvendo figuras exponenciais da religião afro-brasileira.
No
terceiro capítulo, “A projeção do nome e liderança feminina”, o autor demonstra
que a pouca visibilidade das lideranças masculinas, se relaciona com a fundação
e permanência das mulheres à frente dos mais “famosos terreiros”. E serão essas
figuras exaltadas pela mídia que darão grande visibilidade ao candomblé e
proporcionarão expressivo respaldo à sua legitimação na sociedade mais ampla.
Entretanto, isso não deixa de ser um entrave para que se alcance uma
compreensão mais abrangente da religião afro-brasileira e de seus problemas,
assim como impede uma visão mais nítida do valor de tantas outras lideranças
com sabedoria e notoriedade, em grande parte nos limites das suas comunidades.
E isso ganha ainda maior realce para as lideranças religiosas masculinas que,
em sua quase totalidade, passam distante do fechado círculo das famosas mães-de
santo. E, no afã de fugir à invisibilidade, algumas lideranças usam expedientes
de auto-promoção, no mínimo, para o povo do axé, esdrúxulos ou heterodoxos. Com
esta base inicial, o autor faz a
história, via imprensa, e também
narra estórias e lendas do povo-de-santo em torno de grandes matriarcas do candomblé.
Em
seguida, aborda o problema da sucessão nos candomblés da Bahia, dando ênfase à
sucessão na família consanguínea. Concentra-se aí no candomblé do Alaqueto,
fazendo uma justa homenagem à inesquecível ialorixá Olga Francisca Régis, mais
conhecida por todos como Olga do Alaqueto, com novos dados sobre a sua história
de vida e personalidade marcante. E conclui o capítulo mostrando um caso
especial de sucessão, a bem exemplificar os novos tempos.
No
quinto capítulo, “Os ogãs e outros homens na cidade das mulheres e dos homens”,
o autor começa dando o tom da sua exposição, ao esclarecer que os ogãs são
membros efetivos do candomblé, com direitos, deveres e obrigações, sendo a sua
escolha marcada pelo efetivo papel desempenhado na comunidade religiosa. Assim,
não obstante a importância da presença de membros brancos das camadas
privilegiadas, outros critérios, além do prestigio político ou riqueza, como
relações de parentesco, laços de amizade e vizinhança, são acionados pela liderança religiosa na
composição do quadro de ogãs de cada terreiro. E a partir daí disseca as
diversas categorias de ogãs, com a propriedade de quem conhece profundamente a vida nos terreiros de candomblé. Além disso, o
capítulo traz também um pouco da história de eminentes pesquisadores, desde
Nina Rodrigues, que se beneficiaram da sua condição de ogã para o conhecimento
da religião afro-brasileira. Mais adiante vai tratar da presença de outros
homens ilustres nos terreiros, destacando os “Essas”, nome pelo qual passaram a
ser conhecidos e lembrados na comunidade religiosa afro-brasileira aqueles que
estiveram ao lado das primeiras mães-de-santo na Bahia, apoiando-as em tudo que
representasse a sustentação do terreiro. Chega assim à complexa fundação da
Casa Branca e as dúvidas que ainda permanecem sobre os membros primeiros do
famoso candomblé. Passa então ao Opô Afonjá e a presença de Joaquim Vieira da
Silva, Essa Oburô, na consolidação, tanto do terreiro de São Gonçalo quanto do
Rio de Janeiro. E, evidentemente, conclui o capítulo, assinalando a
participação de Rodolfo Martins de Andrade, o nome de branco do famoso Bamboxê,
assim como o também inesquecível Felisberto Nazareno Sowzer, Ogumtoxi, como
figuras ilustres na condição de ancestrais afro-brasileiros, ainda lembrados,
quando não venerados.
No
sexto e último capítulo, faz uma revisão crítica e histórica da presença do
lendário Martiniano Eliseu do Bonfim na “cidade das mulheres e dos homens”, ou
seja, no candomblé da Bahia. Mais que
ninguém, a trajetória de Martiniano entrelaça-se à história da religião
afro-baiana, assim como à história da nascente antropologia brasileira. E, de
modo a consolidar posicionamentos de pesquisa, o autor problematiza diversos
aspectos concernentes a vigências na compreensão da religião afro-brasileira,
demonstrando os deslizes acadêmicos ou “mitos” construídos pelo povo-de-santo.
As
conclusões são categóricas na avaliação das mudanças que se processaram, e
ainda estão em processo na religião afro-brasileira. Simultaneamente, demonstra
os diferenciados mecanismos utilizados para a preservação da memória
patrimonial dos terreiros. E, sem dúvidas, Martiniano obcecado pela manutenção
de um padrão africano, desempenhou também um inegável papel na reinvenção da
estrutura religiosa afro-brasileira.
Enfim,
chegamos ao final de um texto que esclarece e problematiza personagens e
situações da história do candomblé baiano. Candomblé que poderemos entender
como uma “cidade de mulheres”, mas, como revela com propriedade o experimentado
pesquisador, impossível de se
concretizar sem a existência de uma “cidade de homens”. Um fascinante texto, que logo se transformará
em livro, e que, com certeza, se
tornará referência fundamental da
bibliografia religiosa afro-baiana.