Uma boca livre em São Paulo
Anos atrás, li
Estrelas no Céu da Boca, do autor Carlos Alberto Dória. Gostei muito, porque ele tinha sido dono de
restaurante, entendia de culinária e gastronomia em sentido amplo, conhecia a
bibliografia nacional e internacional sócio-antropológica e gastronômica. A
partir daí passei a acompanhar a sua produção, seu livro com Atala, sua
história da culinária brasileira, um livreto para a Folha de São Paulo, e
tantas outras coisas. Um dia recebo um e-mail dele dizendo ter lido meu artigo
sobre Vilhena e queria que eu fosse a São Paulo falar sobre a cozinha dos
negros. Eu disse que não era um assunto que me preocupasse no momento e que o
faria em futuro incerto. E que eu não viajava, por motivos pessoais. A partir
daí, nasceu uma amizade e uma interlocução, onde muito aprendi com ele.
Terminei indo a São Paulo, mais para conhece-lo, que para falar sobre Manuel
Querino. Adorei o cara: gosta de mulher,
biriteiro, boa boca e um papo descontraído. Voltei contente e vendo que a nossa amizade e
parceria só ia crescer. Ele já tinha um blog o ebocalivre que comecei a acompanhar, e que agora passei a saber que
já tinha quase 900 posts e mais de 250 mil visitas. Incentivado por sua amiga
Josélia Aguiar, sai agora uma seleção de textos do blog, em forma de livro com
o título e-Boca Livre. Cometudo #
Falademais ( São Paulo: Edições Tapioca, 2015 ) Bom de briga, não poupa os
poderosos e os farsantes da culinária brasileira. Eu vou escrever apenas
algumas das suas ideias centrais contidas no seu provocativo e agradável livro.
No primeiro capítulo, Critica da
Critica, ao preconizar uma gastronomia do futuro, ele demonstra é que
precisamos de menos artificialismos e mais simplicidade para o bem comer. Ao
tratar da jabaculê ao bundalelê, Dória apresenta o abastardamento da crítica
gastronômica. E com isso abre o caminho para vislumbrar a relação entre a
alimentação e a corrupção da imprensa, além da participação governamental. Ao
abordar a crítica que precisamos, ele advoga o anonimato e que o mundo da dita
“alta” gastronomia é um grupinho que domina o mercado e que termina por cooptar
o crítico. Resume: para tornar-se um crítico em culinária – não se faz em
escola – é indispensável ter um conhecimento multidisciplinar que pode ir da
química até a história. Segue dando uma aula sobre o que é ser um crítico em
gastronomia: a importância do de conhecer a teoria das cocções, como ver o
ingrediente e/ou produto, os perigos de certo tipo de ideologia nutricionista,
a importância dos aspectos do empreendedorismo e as questões concernentes ao
cardápio. Seguindo, fala de dois críticos de gastronomia que admira: Rafael
Garcia Santos e o seu preferido Manuel Vázquez Montalban. Ironia: já li três
romances policiais adoráveis e um belo livro sobre futebol do Montalban.
Infelizmente nada li dele sobre culinária. Algum dos abonados da Gazeta dos
Búzios poderia fazer a caridade de me oferecer o seu livro clássico, Contra los
gourmets: não digo o preço na Amazon internacional para não assustar. Fora a brincadeira, vamos voltar a Dória.
A partir dai passa para o terroir,
onde usa o seu vasto conhecimento sobre Darwin e o evolucionismo - sua erudita tese de Doutorado -, destacando
a importância do trabalho humano. Enfim, a excelência de um vinho depende da
vinha, da natureza e do homem. E ainda abordando o vinho, ele ressalta, de
forma crítica, que beber vinho, antes que um prazer individual ou familiar,
transformou-se em um estilo de vida. É cômica e perfeita, o que dirá mais
adiante, sobre os enochatos. Tratando da gastronomia molecular – distinta da
cozinha molecular – é abertamente um defensor de Hervé This, que advoga que
“cozinhar é sempre para o outro”, motivado por simpatia, por amor. É muito
interessante a sua visão sobre os estagiários dos grandes chefs, que pensam
fazer um favor aos ambiciosos jovens que precisam fazer CV. Para Dória, a
maioria são escravos e os poucos que se destacam são logo contratados pelo
chef. Em relação às revistas de
gastronomia, ele as denomina de “a filosofia da celebração”: de receitas, chefs
e produtos. Os restaurantes, com seus chefs, na maioria vivem de modismos e
“invencionices” – todo mundo é criador.
“Para onde foram os chefs?”, é um livro do crítico Francois Simon. Para
o francês, a gastronomia conseguiu se autodestruir, em especial devido a seus
chefs se tornarem personagens midiáticos; ele nunca está à frente do seu
restaurante, Simon acha que a desgraça começou com Paul Bocuse, o primeiro
midiático intinerante. Porém, Dória
considera que os problemas da alta cozinha francesa são mais complexos. Embora paulista,
lúcido, vê como um mito, São Paulo como metrópole gastronômica do mundo. Para ele, se come em países imaginários e São
Paulo é pobre em variedade, visto o mundo em sua amplitude. É cínico e realista
com os vegetarianos, ao dizer que eles parecem cindir a natureza ao meio: a
natureza do “bem” e aquela do “mal”.
Vê a gastronomia como a arte da
sedução, a busca do prazer ao comer. Acredita que a cozinha brasileira será
renovada como resultado de múltiplos esforços, como o trabalho, entre outros
poucos, realizado por Alex Atala e Helena Rizzo. E conclui o capítulo, mostrando a importância
da educação gastronômica do nariz. A apreciação gastronômica envolve todos os
sentidos. Salienta, contudo, que os
cheiros são um imenso território a ser explorado e entendido. Em outra
postagem, ao tratar da memória das comidas, devo voltar ao nariz.
No capitulo seguinte, fala dos
chefs, dos chefinhos e chefões. E já começa expondo a sua perspectiva: gosta
mesmo é daqueles como Santi Santamaria, que se autodenomina cozinheiro. Hoje, digo eu, basta fazer um curso de gastronomia, um
estágio na Europa ou até no Senac, e já se diz chef. Dória explicita que a
única cozinha brasileira que temos é a de origem popular. Com outras palavras, reage à tradição vista
como imutável e estável, afinal, comida, como a realidade social é sempre
dinâmica. A partir daí caminha por restaurantes e passa por chefs, que admira o
trabalho. Evidentemente pela importância para a culinária brasileira, concede
destaque ao trabalho de Alex Atala e seu consagrado DOM. Mas, não deixa de fora
outros nomes que aprova: começa com uma cozinheira do primeiro time, Thalita
Barros, proprietária do Conceição Discos;
os milhos, os quiabos e os chchus de de Roberta Sudbrack, com a sua
campanha contra a modernização; Felipe Rameh, o cozinheiro mais talentoso
da brigada de Atala, hoje em Belo
Horizonte, no seu restaurante Trindade e Roberto Oliveira, com o seu Mocotó. De
inspiração sertaneja, tivemos no Mocotó uma noite maravilhosa, bebendo cervejas
artesanais, saboreando deliciosos petiscos, como o mocofava – caldo mocotó com
favada – e o serviço impecável, em muito apoiado na gentileza da bela gerente e
a cortesia do jovem chef, o citado Roberto
Oliveira, já legitimado pelos
paulistanos. Passa pela renovação da
cozinha espanhola, com as técnicas modernas de Adriá e o relaciona com as
possibilidades de uma modernização da culinária brasileira. O próprio Adriá
confessa que a exploração dos produtos da Amazônia equivalerá à descoberta das
Américas. Dória, considera que Ferran Adriá foi o nosso último ciclo de
encantamento à mesa. Para ele, depois de Adriá veio a espetacularização e
coisas não gastronômicas, como a insuportável farsa da sustentabilidade. Ele
nomeia, por exemplo, os chatos das sociedades protetoras de animais que querem
tutelar a cozinha. Querem acabar com o foie gras e até mesmo intrometer-se nas
cerimônias sagradas do candomblé. Mas, calam-se diante da “aparente assepsia”
da morte nos frigoríficos da Friboi e da Sadia.
Sem xenofobia, defendeu Olivier na sua declaração de que os brigadeiros
e quindins são uma porcaria, devido ao excesso de açúcar. Estamos entre os
maiores comedores de açúcar do mundo. O pior será aparecer um idiota da
burocracia ou política querendo punir os obesos, ao invés de reagir contra a
cadeia alimentar e o marketing empresarial.
No capítulo 4 – Às vezes é de sua
conta – são as suas broncas com os serviços dos restaurantes. Achei muito
engraçadas as suas espinafrações sobre as entradas, a chateação dos garçons com explanações gastronômicas e
outros deslizes. Óbvio, fala dos restaurantes famosos e
caros. Mostra as espertezas de certas casas, que ele denomina de armadilhas da
hospitalidade. Aponta para um fenômeno, já presente também nos shoppings de
Salvador, onde além das praças de alimentação, em geral muito barulhentas, a
existência de um novo tipo de cliente, com poder aquisitivo, que deseja uma
espécie de “alta costura” culinária e, óbvio, distante do barulho da plebe
ignara. Dória não tem certeza se vingará. E parte para questionar vários
aspectos do “food truck”, que envolve desde os vendedores tradicionais, a
questão do estacionamento do negócio , o “higienismo”, até a Comissão de Comida
de Rua. Lá em São Paulo, com todos os despautérios, o assunto foi discutido e
continua, aqui foi visto – sem maiores discussões pelo que eu saiba – como um
fenômeno modernizante e muito aplaudido.
Passamos aos “Ingredientes, receitas e
dicas: a pequenez da nossa confeitaria; a ditadura dos porcos estrangeiros, em
detrimento das raças nacionais; um prato de Ferran Adriá, Pasión: um maracujá
dentro da casca, feito na brasa, servido com as sementes e molho de tucupi; a
ordem culinária e o nominalismo ou a ausência de uma classificação racional –
eu acho muito difícil ser atingida inteiramente; a importância da precisão na
nominação, para não vender gato por lebre; a critica ao culto da quantidade
certa na receita; a infantilização no domínio dos sabores doces e a sua ojeriza
ao leite condensado; o acaso e a cozinha ou conversas em torno do
micro-ondas. E nesse capítulo, chora a
destruição da cozinha caipira e atinge
“achegas a culinária negra da Bahia”, fazendo um marketing do meu artigo sobre
A comida dos baianos no sabor amargo de Vilhena. E termina, lamentando a
ausência do sangue – proibido pelos órgão sanitários – nos privando da saborosa
galinha de molho pardo.
No capítulo 6, “Dando nome aos
bois”, aborda o monopólio da Friboi e as relações com a destruição da Amazônia.
E não se conforma com a nefasta imitação das normas higienizantes norte
americanas. No capítulo seguinte, “Em pratos limpos” , bate firme sobre os
rumos da alimentação. Toca no ponto chave: a credibilidade dos produtos da
indústria alimentícia. Vou citá-lo diretamente: “Apesar do conhecimento do que
produzia a encefalopatia, a grande indústria da carne não renunciou a cérebros
e vísceras na ração bovina, obrigando-os a um canibalismo contrário à sua
natureza herbívora. Só com a epidemia no rebanho britânico é que, em 1988, o
governo proibiu a utilização de farinha animal na ração” (p.177) A força dos conglomerados agroalimentares é
tamanha, que, agora em 2013, a Comissão Europeia anunciou que os peixes de
cativeiro poderiam, novamente, ser alimentados com farinhas de porcos e aves.
Assim, as penas de frangos brasileiros, transformados em farinha, são
exportados para o Chile nosso grande cliente, como insumo para produção de
salmões de cativeiro que, depois comeremos em sushis em nossos restaurantes
mais estimados. Dória, ironicamente
pergunta: leis sanitárias: ameaça ou prevenção?
Como já estou cansado, cito o autor: “Para nosso Estado, comida ou é
nutrição, ou folclore, ou frescura” (p. 186). Os dois últimos capítulos são a
“A cozinha inzoneira do Brasil” e uma
entrevista do autor com Ferran Adriá. No primeiro caso, já falei em meu blog
sobre o livro: considero indispensável para quem se interessa por alimentação.
No caso da entrevista, o jeito é comprar o livro ou recorrer ao site do
entrevistador.
Espero tenha oferecido
uma visão geral do exposto no livro e do seu pensamento: crítico e consistente.
Valeu, Dória.