PUGNAS RENHIDAS”. FUTEBOL, CULTURA E SOCIEDADE EM SALVADOR (1901- 1924)


                        Já não precisamos ficar,  do ponto de vista acadêmico, nos queixando da ausência de uma bibliografia sobre o futebol brasileiro. Mais, pesquisadores nacionais já não permanecem em nossas fronteiras, avançando para a presença de jogadores brasileiros em gramados alhures do nosso território. Trabalhos sobre a história do futebol, envolvendo a organização, regiões, clubes e personagens, futebol e política, futebol e mídia, futebol e linguagem, futebol e torcidas, futebol e identidade, futebol e sociedade, classe e raça, futebol e globalização, futebol e corpo, futebol e música, futebol e violência, são apenas alguns dos temas que tem proliferado, desde o aparecimento da renovadora coletânea, de Roberto da Matta e outros autores, “Universo do Futebol: esporte e sociedade brasileira” ( Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982). Uma bibliografia que aumentou progressivamente em quantidade e qualidade, concentrada em grande parte no Sudeste e no Sul, mas, já se espraiando para outras regiões do país. Entretanto, lamentavelmente na Bahia, o futebol ainda não entusiasmou a Academia, as suas Universidades, apesar da proliferação de cursos de Educação Física. E, na sua quase totalidade, excetuando artigos, nada tem sido publicado entre nós. Há sim, uma relativa quantidade de livros extra-academia, além de memorialistas, expressivos, porém, na sua  grande maioria em edições caseiras, sem grande impacto editorial.
                      Assim quando chegou às minhas mãos o trabalho “Pugnas Renhidas: futebol, cultura e sociedade em Salvador ( 1901-1924), logo publicado pela Edufba, na sua coleção É  Futebol,  fiquei entre o entusiasmo e a reticência. Eu sempre pensei que a Bahia, por sua decadência política na Primeira República, por sua ausência de dinamismo econômico no período, além de sua configuração demográfica, tinha especificidades que se refletiam na formação do futebol. Já tinha lido um ou dois artigos sobre o futebol baiano que, na linha do racialismo atual, queriam simplificar  o problema em torno da “revolução” do Vasco da Gama, nos caminhos da interpretação do clássico “O negro no futebol brasileiro”, de Mário Filho (Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 5ª. edição 2010). Como todos os clássicos, buscando apoio em Calvino, ele deve sempre ser relido, pois ele é a matriz dos estudos sobre o futebol no Brasil. E o papel do seu autor, na popularização e transformação do futebol em símbolo nacional, não pode ser esquecido. Mas, daí a torna-lo Biblia, até para ateus,  é outra coisa. O que ele diz vale, e muito, para o Rio de Janeiro. Além da polêmica sobre a importância da raça e classe, a partir do trabalho de Mario Filho,  através de Antonio Jorge Soares, com  “História e Invenção de Tradições no campo do futebol”( Estudos Históricos, 1999, n. 23, pp. 119-146) e Ronald Helal e Cesar Gordon Jr., com “Sociologia, História e Romance na construção da identidade nacional através do futebol” ( Estudos Históricos, 1999, n.23, pp. 147 a 165), muito tem sido escrito sobre o futebol carioca. Apenas para exemplificar avanços significativos na compreensão do futebol carioca, os vejo nos livros de Leonardo Affonso de Miranda Pereira, com “Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938 ( Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000) e o de Bernardo Buarque de Hollanda, “O clube como vontade e representação. O jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro ( Rio de Janeiro: 7Letras, 2009).
              Vocês devem estar se perguntando o que isso tem a ver com  “Pugnas Renhidas”. Eu diria, tudo. O Rio de Janeiro, nas sombras de Mário Filho, tem sido identificado como a base da criação e evolução do futebol brasileiro nos inícios do século XX. Um futebol que teria nascido fidalgo, branco, amador, o protótipo da civilização. Uma assistência elegante, charmosa, com as senhorinhas das elites “torcendo os seus lenços”. Depois chegaram os negros e pobres, até a apoteótica vitória na década de 20 do Vasco da Gama, com seus negros e  um “profissionalismo marrom”. Nasceu  uma nova liga de brancos e amadores, mas já não era possível deter os negros, tampouco a profissionalização, que viria a ocorrer na década de 30. E a mudança no campo, também ocorreu na assistência. O futebol, devidamente apropriado pela era Vargas, popularizado, se transformou em um dos símbolos da nacionalidade brasileira. O mito da democracia racial  apareceu também  no futebol, com ídolos que vão de Friendereich ao nosso “diamante negro” ( Leônidas) . Porém, o negro, culpado pela nossa derrota em 1950, teria que esperar Pelé para sua relativa redenção.
              A história do futebol baiano, demonstra o autor, nasceu também como um marco de civilização, sendo a criação da Liga Baiana de Sports Terrestres em 1904, também denominada Liga dos Brancos , pautada em critérios raciais e classistas. Apareceu com as elites apresentando glamour nos campos e nas assistências. Porém, era um futebol sem estádio, com adaptações que iam do Campo da Pólvora ao campo do Rio Vermelho. Somente em 1921 viria a ser criado o campo da Graça, com as características contemporâneas dos antigos estádios brasileiros. O porém, é que cedo o futebol se popularizou, seja com a sua presença nas ruas, na liga com os pobres, mestiços e pretos, seja com as camadas populares invadindo as áreas de assistência dos “cavalheiros, senhorinhas e mademoiselles”. Assim, seja pela ausência do fairplay nas competições, as “cavações” ( profissionalismo marrom), as atuações suspeitas,  a presença de novos tipos de assistentes, os clubes das elites se retiraram do futebol . Assim,  o futebol se distanciou dos ideais preconizados pela imprensa da “rapaziada alegre e educada”, pois o que parecia valer “era tiro ou abandonar o campo”.  Já desde 1909, clubes mais heterogêneos  ingressavam na Liga, clubes de gente menos favorecida, o que acalentava o discurso da imprensa e das elites, em torno da gradativa perda do “nobre espírito do esporte. Entretanto, a desistência da maioria dos clubes de elite, não implicou na morte do futebol. Em 1913, em substituição à Liga dos Brancos, foi criada a Liga Brasileira de Sports Terrestres. Apesar do desprestígio entre a imprensa e as elites, a  Liga contou sempre com um mínimo de cinco clubes, sendo um espaço efetivo e prático para a disputa e lazer, para a democratização e popularização do futebol.  Os clubes elitizados criaram, em 1914, a Liga Sportiva da Bahia, realizando, em 1915, um campeonato com seis clubes. Mas, o problema retornou, pois o Yankee, logo no seu segundo jogo deixou a entidade, por “questões de cor”.  Realizaram apenas dois campeonatos e desistiram, afinal, a prática não era mais restrita a um grupo ou classe,  por outro lado, as sensibilidades e sociabilidades despertadas pelo futebol já não se resumiam aos ideais das elites e da imprensa.
          Nos finais da década de 10, mais precisamente em 1919, as elites e a imprensa tentaram  recuperar um sentido para o esporte que parecia perdido: o refinamento e a civilidade, e a ordem da época, o ideal eugênico. Tinham  trunfos para criar uma nova Liga, em especial a construção de uma praça esportiva moderna, à altura da realidade existente no Rio de Janeiro: o Campo da Graça. Tentativas, para afastar os clubes modestos e os assistentes inconvenientes, foram realizadas, entretanto, já era tarde: o futebol já era do povo, das camadas populares da Bahia. No campo, com o Ypiranga e o Botafogo, com seus jovens habilidosos, entre 1917 e 1930, em apenas duas oportunidades eles não foram os vencedores do certame. E o populacho lá estava para aplaudir, xingar e vaiar, afastando progressivamente os “modos civilizados de torcer”.
               Mas, as “pugnas renhidas” também versam sobre o futebol baiano no cenário nacional.  Curiosidades, como um “catadinho” ( jogadores de várias agremiações), denominado  “Henrique Dias” (uma entidade civil em prol dos negros) pela ajuda e incentivo que a respectiva agremiação deu ao time, dos cinco baianos, o único a vencer o Villa Izabel, do Rio de Janeiro. Nesse capítulo, ele demonstra o nosso avanço no futebol nacional, especialmente com a figura impar de Popó, o nosso “preto de ouro”, mas que “incomodava” por sua condição sociorracial.  A Bahia tentando agenciar um discurso identitário, distante das suas práticas no futebol, que a credenciaria no palco esportivo nacional. Conversa sem resultado. Os campeonatos nacionais serviram como pano de fundo da tensão estabelecida entre a Bahia, os estados do Norte (Nordeste) e a CBD.  Ainda não havia o servilismo atual, mas tem história o menosprezo da CBD, hoje CBF, em relação ao futebol da Bahia e do Nordeste, assim como a desorganização dos dirigentes baianos.    
                É um texto que abre fronteiras para a compreensão da história peculiar do futebol baiano, com argumentação convincente pautada nos fatos, rica iconografia e escrita acessível aos leitores. Com certeza,  se tornará fonte imprescindível para todos que estudam  ou gostam de futebol. O autor, assim como Popó, construiu um jogo “cheio de reviravoltas”. Parabéns à EDUFBA por sua publicação.

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