ESCREVENDO E COZINHANDO BONITO NA COLÔMBIA

                A Colômbia com seus 47 milhões de habitantes, possui 102 povos indígenas, 60 línguas, além do povo cigano ou rom e as comunidade afro. No último censo realizado em 2005, se autorreconheceram como indígenas na Colômbia 1.392.623 pessoas.  Há mais de 500 anos que  se conhece uma das comunidades indígenas mais numerosas: os camentsá. Com mais de 8.000 integrantes, a maior parte ainda habita o seu tradicional território: o Vale do Sibundoy, localizado no Departamento[1] de Putumayo, fronteira com o Equador e Perú. Hoje a população indígena está dividida em 66 resguardos[2], localizados em 13 municípios. Projetava-se para 2011, que a população indígena seria de 26.409 habitantes. A maioría dos brancos moram nas cabeceiras municipais, enquanto os indígenas ocupam as áreas rurais. Sibundoy, “capital cultural” do Putumayo, vive da agricultura, criação de gado e comércio, em particular do artesanato dos indígenas da região; tem 93 km2  de extensão e uma temperatura média de 140C. Os dados oficiais apontavam que no ano de 2008 haviam 13.464 habitantes, dos quais 5.539 eram camentsá. Sua presença no local, dataria entre os anos 425 e 1180; sua origem é discutível, sendo plausível serem procedentes da Oceania, Malásia e Polinésia; sua língua é considerada isolada, pela dificuldade de classificação. Jovens e adultos trabalham com o artesanato, vendendo aos comerciantes de lojas especializadas ou fazendo diretamente a venda. Além disso, os camentsá são grandes conhecedores das plantas tradicionais, sendo o yagé ou ayahuasca o eixo do seu conhecimento, o pilar da sua cosmovisão. É famoso também seu carnaval.
                Vale salientar, o processo histórico dos camentsá é marcado pelo genocídio, etnocídio e contínua expropriação de suas terras. Foram protagonistas dessa violência, de forma intermitente, desde o século XVI, os espanhóis, os religiosos cristãos, os fazendeiros e os colonos. A redução do território dos povos indígenas é um componente que, inevitavelmente, provocou e ainda provoca grandes transformações no modo de vida de seus membros, em especial na alimentação. A concentração da terra pela população branca em geral, conduzem os indígenas a contar apenas com minifúndios, no melhor dos casos, enquanto outros nem possuem acesso à terra. Predominava a endogamia, no entanto, atualmente muitos casamentos ocorrem entre indígenas e colonos, já não se faz o primeiro corte de cabelo, se tem perdido a linguagem tradicional, o parentesco é patrilineal, as famílias são nucleares, a residência é neolocal e, progressivamente, os jovens abandonam os costumes tradicionais.
               
                Mas, o propósito deste texto não são os camentsá como um todo, mas sim abordar o trabalho sobre alimentação efetivado por uma jovem séria e competente, a colombiana Indira Quiroga, autora de uma bela dissertação de Mestrado na Pós-Graduação em Antropologia da UFBA, em 2015,  denominada Cozinhar Bonito: uma etnografia da cultura alimentar camentsá no no Vale de Sibundoy, Colômbia. Já na sua introdução, ela enfatiza que o povo indígena camentsá, vem tentando, com o manejo moderado da terra,  garantir a alimentação de forma sustentável. E mostra que aprendeu a boa antropologia, ao dizer em seguida que as sociedades indígenas não podem ser entendidas como sociedades estáticas ou isoladas, nem temporal, nem espacialmente, muito menos quanto à forma de se apropriar e de significar suas práticas e cosmologias. E que diante dos processos de globalização e mundialização da cultura, os povos indígenas se encontram em constante diálogo, intercâmbio e choque com a força da ocidentalização. E se apropriam de conceitos vindos de fora e exteriorizam suas posições com o fim de serem reconhecidos pela sociedade nacional. Esses povos tem experiências e maneiras próprias de viver os processos que os atingem, procurando manter os aspectos tradicionais no seu cotidiano. Assim, a partir da abordagem de sociedades indígenas, se pode dar conta de processos mais amplos que estão relacionados, com a economia, poderes políticos, necessidades nutricionais e significados culturais que permitem explicar a transformação dos consumos alimentares. E será sob esse prisma que tratará da cultura alimentar, no sentido aplicado por Contreras, dos camentsá.    

                Gosto que me enrosco com o tradicional  trabalho de campo, à Malinowski, de gente que vai viver com o seu sujeito, conhecer suas dificuldades, seus desencantos, seus amores, suas vitórias mínimas. Indira foi lá, e como ela própria diz, a abordagem foi feita a partir da vida cotidiana. Nada de rituais exóticos, o que ela queria era o simples, o dia a dia com a sua rotina, o que passa despercebido devido a sua naturalização, através da vida quotidiana de mulheres idosas da comunidade camantsá. Mulheres nascidas na primeira metade do século XX. Muitas já sem marido, por abandono ou morte, morando perto ou com suas filhas. Todos os dias elas colhem seus cabelos longos e pretos fazendo uma trança. Sempre se vestem com saias abaixo dos joelhos.  Suas casas são de alvenaria e geralmente contam com o fogão a lenha e o fogão a gás. Todas as casas contam com serviço de água, criado pela comunidade e que abastece as diversas veredas.[3] Nenhuma delas mora no mesmo lugar onde foram criadas; cada uma construiu uma casa em outra vereda, acrescentando porções de terra a seus bens. Isso as conduz a uma posição privilegiada, levando em conta que muitos membros não possuem terra para trabalhar.  A autora as conheceu em 2008, através de familiares, retornou em 2013, mas só começou seu trabalho de pesquisa em 2014, ali permanecendo de maio a julho. Com sua beleza de menina e senso de responsabilidade, conquistou muitas mãezinhas – forma respeitosa de se dirigir às mulheres mais velhas e conhecedoras da comunidade. Foi morar com Dona Georgina, sempre adoentada, onde além delas, viviam sua filha de 24 anos e dois filhos pequenos. Além de viver com uma família, transitou por diversas veredas do Vale , de Las Cochas a Las Palmas. Como muitas mãezinhas ficavam sozinhas, devido aos afazeres dos demais membros, as conversas se tornaram tão importantes para a pesquisadora, quanto para elas.

                Passemos ao alimento da vida toda: o milho. É o alimento quotidiano e especial dos camentsá. Quiroga fala dos atuais tipos de milho utilizados e dos que já não mais existem. Aborda a sua diversificada utilização, de bebida alcóolica a edulcorantes alimentícios. Mostra as formas de semeadura, sem esquecer as antigas formas comunitárias, hoje já desaparecidas. Atualmente, o semear é feito tanto por homens como pelas mulheres, o que propiciou à pesquisadora “meter a mão na massa”. Daí vem a coleta do milho, com o seu transporte até em casa, onde ocorre a debulha, sendo mesmo transformado em alimento, através de diversas técnicas. Passa de cru a cozido, para então ser comido ou bebido. Faz uma excelente descrição da receita de preparação do mote, uma comida para ocasiões especiais, onde o milho é posto de molho por vários dias ou uma noite, no fogão a lenha. Ela participou de um almoço de mote, com milho descascado, galinha, batata e ovos. Apresenta outras preparações com milho: o tamal, o envuelto, o envuelto de feijão, o caldo de choclo, o milho torrado, a colada, bebida feita com farinha de milho.
                A importância do uacjanaité – dia das almas – em 2 de novembro, onde se fazia um conjunto de oferendas para os mortos, um verdadeiro banquete, porém, devido aos custos está desaparecendo. Na noite anterior se deixava uma mesa farta, com os rituais que acompanhavam a oferenda, sendo convidada toda a família no dia seguinte para partilhar o que tinha sido ofertado aos mortos. É uma ocasião de reencontro espiritual entre os vivos e os mortos.   
                A chicha, uma bebida feita do milho, a qual, apesar da proibição e perseguição, estigmatizada pelos religiosos, foi mantida pelos camentsá. É considerada embriagante, mas também um complemento alimentar. Atualmente em Sibundoy existem diversos tipos de chicha, com a autora mostrando a sua forma de preparação. Embora substituída pela cachaça em vários grupos, ela se mantém, com seu rito, como fluxo vital, como ciclo de energia e vitalidade. A chicha indica a comensalidade, acompanhando as ocasiões festivas e o trabalho coletivo. Como afirma Indira, ela nunca vai acabar, pois ela é um elemento de reprodução do grupo.
                Ao nos convidar para comer a bishana, a jovem antropóloga, demonstra a sua forma de preparação e os ingredientes utilizados: primeiro, na panela com água no fogão se coloca a carne, depois vai adicionando o feijão e  as couves e, por fim, o milho, moído pelo menos dez vezes – não mais com a pedra de moer – no moinho. Existem outros tipos de bishana – embora a base seja mantida – no entanto, continua sendo feita no fogão a lenha. Exige muito tempo de cocção, sendo comida de aguante[4], de fortaleza, de resistência. Não é uma comida diária, sendo feita a pedido dos familiares ou vontade das mulheres.      
                O consumo de tubérculos, excetuando a mandioquinha, um tubérculo tradicional, diminuiu sensivelmente, devido à estigmatização desses alimentos por parte dos colonos, que consideram que elas são comida para porcos. A batata também é consumida pelos camentsá, mas ela é considerada de “fora”, não sendo comida tradicional. Na roça também se criam animais, gado, porcos, galinhas, patos e os porquinhos da índia. Devido aos altos custos da proteína animal, o seu consumo não é diário, cabendo em ocasiões especiais. O pouco gado existente é leiteiro, não para o consumo da carne. Quando possível a sua carne é comprada no mercado.
                Uma curiosidade é que o porquinho da índia, um animal doméstico, que vive no interior das casas – assim como no Equador e no mundo andino – ele não tem nome, sendo criado para ser sacrificado. Situação diferente gozam os cachorros e gatos, pois fazem parte da família, não sendo comestíveis.
A autora explora, com maestria, a formação da mulher camentsá: a socialização, a impureza do sangue menstrual; a importância do relacionamento com a terra e com os animais; o trabalho doméstico sendo opcional para os homens, mas obrigatório para as mulheres. “Cuidar da casa” é uma importante ferramenta de análise das relações de dominação entre os gêneros: ele é um trabalho árduo e opressivo, mas também fonte de poder e criatividade.  As novas gerações, escolarizadas, em grande parte já não reproduzem o perfil das gerações anteriores. Já não possuem a relação de interação com  a terra, tampouco submetem-se inteiramente à cozinha tradicional.
                Assim como já havia feito Oscar Lewis no seu trabalho no México, Indira “passa um dia”  na sua família camentsá, registrando todas as situações, desde as 6 horas da manhã, óbvio, dando destaque aos diversos níveis da alimentação, do âmbito da preparação ao comer especificamente. Assinala que o papel assumido pelas roças na obtenção  dos alimentos, as torna o “supermercado” das mãezinhas, obtendo delas até 70 espécies. Contudo, as mudanças estão vindo. Seja por seu tamanho ou ausência, seja pelo tempo e fascínio com velhos e novos produtos, o caminho das feiras e dos pequenos supermercados é o caminho de todos na compra dos produtos industrializados. Interessante é ainda a manutenção do escambo entre os indígenas. Embora o fogão a gás seja primordial, o fogão a lenha permanece. Em geral é localizado no interior da casa ou em um quarto adicional; ele se mantém porque existe uma crença tradicional na relação entre a família, a fumaça e o calor.
                Ao contrário da mesa, no sentido ocidental (hoje idealizada), para os camentsá ela não é considerada um momento de reunião da família. Ordinariamente não se come ao mesmo tempo, devido às diferentes atividades de cada membro do grupo. O talher utilizado é sempre a colher. Entre as comidas, a sopa (sopita) é fundamental no almoço, com ingredientes variados, pois ela esquenta o corpo. Ela é o prato principal, ao contrário dos brancos, onde o prato principal no almoço é o seco ( proteína animal, carboidratos e algum grão e salada). Mas, além da sopa, embora o seco não seja consumido diariamente na forma desejada, ele não está ausente, apresenta sempre algum componente: carne de boi, porco, frango, galinha, feijão, banana da terra frita e tomate. Na ceia, em geral o arroz, com uma carne ou banana da terra, batata ou mandioca. Acompanhada com suco, café ou água de rapadura. Ao abordar a decisão sobre a distribuição dos alimentos entre os membros do grupo, as mulheres mais velhas buscam manter as práticas tradicionais, tendo primazia os homens adultos, com elas ocupando o mais baixo status entre os membros do grupo. Contudo, alerta a autora, isso não deve ser visto como subordinação, mas de compreender quem precisa e o que precisa.
                Demonstra a guerra entre a comida dos índios e dos brancos, a comida natural e a comida com produtos químicos. A comida dos brancos é considerada pelos camentsá “veneno”. Há uma reação aos médicos e nutricionistas, com sua “comida balanceada”. Para eles, comer o natural permite ter maior fortaleza, organismos sãos e viver até a velhice.
                 Ao tratar de gostos e desgostos, a partir do arroz, uma comida dos brancos, Quiroga, com sutileza, aborda o assunto, demonstrando a variedade de  opções assumidas pelos camentsá. Comer arroz é uma forma de diminuir a discriminação, entre os de fora e os indígenas. Do asco inicial foram se acostumando e hoje é um componente do cardápio camentsá. Afinal, as transformações afetam – em maior ou menor grau – a todos na sociedade.
                Concluindo, Indira Quiroga compreende que são as mulheres camentsá são as responsáveis pela segurança alimentar do grupo, entretanto, o alimento das roças progressivamente se reduz, o que sinaliza problemas para um futuro próximo. Até quando resistirão ao modelo ocidental de alimentação, apoiado pela medicina, nutrição, tecnologia e seu fascínio?
                Enfim, é um trabalho do mais alto nível, com teoria e trabalho de campo consistentes, adequada bibliografia, bem escrito (em português), rica iconografia, a encantar a todos que se interessam pela alimentação, em amplo sentido.    




[1] A Colômbia está dividida em 32 Departamentos, ou seja,  entidades territoriais que gozam de autonomia para a administração de assuntos seccionais e a planificação e promoção do desenvolvimento econômico e social dentro de seus territórios, nos termos estabelecidos pela Constituição e suas leis.
[2] Resguardo é uma instituição legal ou sócio-política territorial, ocupada por um agrupamento indígena, com titulo de propriedade comunitária.
[3] Vereda é uma subdivisão territorial, presente nas zonas rurais.
[4] Aguante é também a denominação dos membros das torcidas organizadas argentinas. 

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