COMIDA E MEMÓRIA OU COMENDO COM OS GREGOS EM KALYMNOS
Já há algum
tempo li um livro que gostei muito tratando de comida e memória. Pensei em
fazer uma resenha, mas o tempo foi passando e outras obrigações impediram-me a
realização de tal feito. Agora, resolvi fazer algumas anotações sobre o
exemplar, denominado Remembrance of
Repasts. An
Anthropology of Food and Memory (Oxford-New York: Berg, 2001 ), de David Sutton. O livro é uma extensão do trabalho de
pesquisa realizado pelo autor na ilha de Kalymnos, na Grécia, em 1998. Tem
início com uma introdução denominada Uma
antropologia Proustiana?, seguida dos capítulos: O ritual e o cotidiano; Lembrando
de presentes, esquecendo de mercadorias?; Memória sensorial e a construção de mundos; Refeições memoráveis; Fazendo/Lendo
o cozinhar e a conclusão intitulada Recapturando
a refeição.
O trabalho
na sua Introdução faz uma revisão crítica da questão da comida e da memória,
utilizando-se de autores que renovam os paradigmas vigentes, vendo a forma que
as sociedades dividem os trabalhos sobre os sentidos diferencialmente, “fazem o
sentido do mundo”, criticando o bias visualista que tem dominado as sociedades
ocidentais. Sutton estabelece que, em momentos de revitalização da memória de
migrantes gregos, quando o passado torna-se presente, e em fases de lembrança
prospectiva, quando o futuro emerge com o passado, ou mesmo na cozinha
nostálgica, em que a comida processada é recolocada como uma refeição
imaginária, “realmente real”, a comida oferece alguns dos maiores pontos de
pontos de entrada no quotidiano dentro da experiência de mistura de
temporalidades.
Nos dois primeiros capítulos, o
tópico da generosidade com a comida, implica na abordagem da interessante
questão teórica concernente à memória e a troca. A comida internaliza débitos
e os repetidos atos de generosidade
geram amizades e memorável reputação em Kalymnos. Uma preocupação atravessa o
livro: o aumento do fluxo internacional de alimentos e as pessoas que os comem,
e o que a globalização pode significar para a mudança das praticas da memória
da comida. Se uma das questões importantes da antropologia é como a
globalização reconfigura identidades e experiências, a memória da comida nos
oferece numerosos pontos de entrada nesse tópico. Exemplificando, o autor diz
que produtos locais tornam-se parte de circuitos globais de troca entre a
“casa” e a vida de migrantes transnacionais; enquanto produtos estrangeiros,
como o queijo Roquefort, são identificados como componentes das especialidades dos
kalyminianos e parte das relações sociais locais, como quando um homem usa esta
mercadoria como um protesto contra a qualidade do queijo produzido pelos
vizinhos.
Um
antropologia atenta à experiência sensorial, como diz o autor, tem muito a nos
dizer sobre o evocativo poder da memoria
da comida, ao mesmo tempo que desafia a estrita dependência à interpretação
simbólica ou semiótica. Memórias do gosto e do cheiro, por sua natureza
tenderão a ser idiossincráticas, associadas ao acaso, como oposta aos símbolos
que podem ser mais cognitivamente coletivos. Mas, isto não significa que a
memória do gosto e do cheiro não são iluminadas por campos associativos, em que
eles são aprendidos e experimentados, consoante a geração, o gênero, a classe e
a etnia.
Adiante, ele aborda diferentes perspectivas
recorrendo à “mesmidade” e à diferença, a continuidade e a mudança, o oral e o
escrito, a tradição e a modernidade, em relação à estrutura das refeições e o
processo de aprender/fazer comida. Comparando e contrastando sua etnografia dos
kalyminianos com as pesquisas feitas nos USA, David Sutton ressalta a
produtividade da noção de memória e que existem muitas diferentes formas
estruturadas culturalmente em termos de práticas de alimentação, refletindo
diferentes consciências históricas. Ele argui contra o uso simplório da dicotomia
de “comunidades tradicionais fechadas” e “sociedades, abertas, modernas”;
antes, ele tem tentado mostrar a extensão de “seguir a tradição”, envolve escolhas, reflexões e variações. E
também demonstrar que a extensão de “fazer sua própria escolha” significa uma
prescrição culturalmente imposta, com implicações para a espécie de memória da comida que será reproduzida na
sociedade, sob a persuasão de uma ideologia da modernidade.
Mordaz, traz à consideração a
“mercantilização da nostalgia”, parte da estratégia de festivais étnicos, que
muitas vezes tem a sua gênese na economia. Não esquece da “memória da fome”
entre os kalyminianos durante a Segunda Guerra Mundial. De forma provocativa,
ele percebe o desdém para o passado culinário na cultura popular dos USA.
Então, esquecer é um problema, que implica em análise, daí levantar a questão:
pode haver um papel produtivo para o esquecimento das comidas do passado?
Muito
mais ele analisa e problematiza; concluindo coma necessidade de mais
etnografias, que comecem da premissa que comida não é simplesmente outro tópico
que “simboliza” identidades, mas um campo que nos desafia repensar nossos
métodos, concepções e teorias em novas e produtivas formas.
Quando comecei disse que já havia
lido há tempos o livro de David Sutton, daí que escrever sobre o mesmo foi
provocado pelo excelente artigo de Ellen
Woortmann, Memória Alimentar: prescrições e proscrições, no livro Ensaios
sobre a Antropologia da alimentação: saberes, dinâmicas e patrimônios,
organizado pela própria Ellen e Júlia Cavignac, sendo editado pela ABA
Publicações e Edufrn, 2016, PDF; 12 MB.