A Formação da Culinária Brasileira


Carlos Alberto Dória conta com algumas vantagens para a sua escrita instigante e criativa. É um expert em gastronomia, um amplo e atualizado conhecedor da bibliografia sobre alimentação, além de se respaldar na botânica, sociologia, antropologia e história. Os seus anteriores livros já me haviam fascinado, mas eu achava que ele podia fazer mais em direção exclusiva à alimentação da sociedade brasileira. Chega em tempo, portanto, o seu Formação da Culinária Brasileira. Escritos sobre a cozinha inzoneira do Brasil (São Paulo: Três Estrela, 2014). É um livro com vários ensaios, todos com uma interpretação singular sobre o comer dos brasileiros.
O primeiro capítulo, Formação da culinária brasileira, o mais amplo, embora ele o negue, é uma história da formação da alimentação brasileira. Erudição e verve crítica se juntam para “curtir” sobre a mestiçagem, sobre o mito das três raças, pautado em Freyre e Câmara Cascudo, também na cozinha. Disseca a importância da herança metropolitana, destacando que uma cozinha se faz com trocas, subtrações e acréscimos. Essencializar a cozinha portuguesa – ou qualquer outra cozinha – em especial ela, é jogar fora as suas constantes mudanças. Quando fala das culinárias indígenas, demonstra que muito precisamos fazer em termos de arqueologia, história e etnografia para conhecermos a comida dos primeiros habitantes do que viria a ser Brasil. Reduzir a sua contribuição à mandioca e algumas frutas, faz parte da nossa visão da aculturação de mão única dos europeus. Embora acredite que os escravos não contribuíram para a cozinha brasileira, não nega que a proporção que se tornavam livres, com criatividade, sobretudo no Recôncavo baiano constituíram uma “cozinha de azeite”. Caminha para o sertão, com “um Brasil  que não senta à mesa”: o Brasil da agricultura de subsistência e da pecuária. Como afirma Dória, um Brasil que ficou para trás, esquecido do ponto de vista culinário, quando na verdade sua “suposta cozinha agreste é, na verdade, feita de diversidade e sofisticação cultural” (p.87). Após, com análise sistemática, ressalta que a cozinha de ingredientes aponta para o futuro. Conclui o capítulo, discutindo as tendências para uma nova culinária brasileira. E que, para competir no mercado da gastronomia, precisamos adotar tecnologias modernas e combiná-las com as pesquisas regionais de ingredientes.
Ao abordar os “secos e molhados”, apontando uma sugestiva classificação, onde discorre sobre as suas formas, o que me fascinou foi a historicidade que ele remete na criação da oposição. No tipo de produção e na distância das atividades produtivas, ele identifica as matrizes para a criação de uma cozinha seca e uma cozinha molhada. No terceiro capítulo sobre “a emergência dos sabores regionais” é uma critica severa aos mitos da “cozinha brasileira” e das cozinhas regionais. Ele recorre à história, ao período da  República Velha, onde o Nordeste perde a força política e  como mecanismo compensatório usa a cultura, sobretudo a culinária. Sob a égide de Gilberto Freyre, a tradição era algo perpétuo, atemporal, sendo um atributo do Nordeste no Brasil. Em seguida, Dória mostra as diferenças entre o regionalismo de Freyre e o culturalismo de Câmara Cascudo, com o triunfo do primeiro. Embora sem atribuir a Freyre, os resultados, sobretudo com o desenvolvimento do turismo, foi o salto do regional à cozinha típica. E como afirma o autor, “A relação entre identidade e tipicidade é muito forçada, pois a tipificação não retém a riqueza cultural na qual os pratos, um dia, estiveram imersos” (p. 166).
Delicioso o seu “Feijão como país, região e lar”. Para mim, no caso baiano, do ponto de vista histórico, o feijão permanece um campo aberto de dúvidas sobre o início da sua primazia.
Nada a ver com o artigo de Dória, em especial com a sua  criatividade. O feijão não há como negar é o prato brasileiro por excelência; cada região tem seu feijão preferido e os variados tipos de ingredientes, por exemplo, nós baianos, somos a turma do “mulatinho”. O feijão preto, entretanto, já domina as festas dos abastados da Bahia, copiando São Paulo. Já o feijão da nossa casa, da mamãe, da vovó, é inigualável, ninguém faz igual. Minha simplificação não faz jus ao escrito pelo autor. No capítulo seguinte, abre uma discussão importante: “legitimidade e legibilidade à mesa”. Legitimidade se refere a algo singularmente brasileiro, como o tucupi. Já legibilidade diz respeito á aquilo nativo ou exótico aclimatado, porém reconhecido como brasileiro,a exemplo do arroz com feijão que todo mundo conhece. Será através da pesquisa etnográfica, culinária, de ingredientes novos e a pesquisa histórica, que se dará a renovação da culinária brasileira. E para isso será preciso insistir, persistir, como diz Dória, para modificar os hábitos do paladar no Brasil.
Sobre “O estilo feminino de cozinhar” é uma discussão sobre o gênero na cozinha. É um texto de natureza histórica mostrando o domínio do homem nos restaurantes, na gastronomia. Vê o feminino na obra de Jorge Amado, onde o autor “projeta a “cozinha de azeite” da Bahia como um território feminino que, de modo indireto governaria o mundo dos homens” (p. 206-207). Essa “cidade das mulheres” de Landes e do feminismo do candomblé “dá muito pano para manga”. Esquecem até que tem homem no candomblé. A discussão sobre o uso do corpo, lembrando de Mauss, das técnicas no cozinhar é extremamente importante, sobretudo na questão de gênero. Enfim, o autor abre um campo vasto ainda não estudado pelos antropólogos. A cozinha doméstica, feminina, não gera a gastronomia no sentido usual do termo – com exceções crescentes, predominam os chefs nos restaurantes – mas será ela a base para julgar o trabalho masculino dos restaurantes.
O seu último capítulo, “Propostas para a renovação culinária brasileira”, onde ele começa  realçando dois aspectos: o esgotamento das categorias históricas através das quais pensamos nossa tradição alimentar; reconhecer a diversidade do público, oferecendo-lhe opções capazes de satisfazer suas diferentes expectativas. Vê chefs inovadores por todo o país, mas, ressalta que alguns são obrigados a fechar seus restaurantes ou abandonar a trilha criativa que haviam escolhido. Utilizando São Paulo, por sua riqueza e cosmopolitismo, ele aponta os estilos que buscam o reencantamento da culinária brasileira: naif, etnográfico, alegórico,experimental, “juscelinista”. Concluindo, Dória aponta “seis propostas para o futuro”, todas da maior importância, mas, eu escolhi somente uma : “Transformar o cozinheiro num personagem culto da cena urbana, especialmente no que tange ao  conhecimento da cultura culinária”. 
Esse é um livro que, seja por sua originalidade, seja por sua perspectiva teórica, tornar-se-á um clássico da alimentação brasileira. Livro a ser adotado nos curso de Antropologia, Sociologia, História, Nutrição. E por todos aqueles que se interessam pela cozinha ou pelo comer.

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