NOTÍCIAS DA PROVÍNCIA
Voduns
na África e no Brasil: a Serpente e o
Leopardo
Tenho
acompanhado a brilhante produção acadêmica de Nicolau Parés. O considero um dos expoentes dos estudos sobre a
presença “brasileira” na África e dos africanos e seus descendentes na Bahia. A
publicação do livro A formação do
candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia ( Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 2007 ) constitui-se em abordagem singular da história dos jejes na
Bahia, antes apenas conhecida de forma fragmentada e assistemática. Entre
tantos outros, dois aspectos ganharam para mim saliência: 1) a predominância
numérica dos gbe falates entre 1740 até 1820 na Bahia; 2) a precedência jeje na
formação conventual, com a presença de vários deuses em uma só “casa”. Isso sem
contar o entrelaçamento das “casas” do Recôncavo com as de Salvador na formação
do candomblé jeje na Bahia.
Vejo
o seu novo livro O Rei, o Pai e a Morte.
A religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental ( São
Paulo: Companhia das Letras, 2016 como uma continuidade e ampliação do livro
anterior. Não é um livro difícil de ser lido, difícil é, para leigos sobre
África como eu, ter uma visão crítica e até mesmo, nos pequenos comentários que
aqui faço sobre diferenciados trabalhos, expor a riqueza do conteúdo e
complexidade dos assuntos abordados. Com certeza, pela sua importância isso
será feito, pela sua importância, por expoentes qualificados para tal.
Começa
com uma viagem à África, versando sobre a interrelação da história política,
econômica e religiosa dos reinos de Aladá, Uidá e Benin. Múltiplos processos
são analisados, desde a família, o chefe –sacerdote e o rei-deus, assim como os
ritos funerários. Em seguida, mostra a correlação entre os processos de
centralização política e o estabelecimento de cultos extra-domésticos, ou seja,
a Serpente em Uidá e o Leopardo no Daomé. E será em torno do Daomé que nos
apresentará os seus costumes
vinculados ao campo religioso e suas transformações. Aí passa ao contraponto
contemporâneo, nas suas palavras, mostrando as cerimônias Neshue iniciadas
pelos rituais dos tohosu (literalmente rei das águas), relacionadas com a
memória política. Iremos encontrar, de acordo, com Parés, na Casa das Minas, no
Maranhão, a estrutura da iniciação característica do culto Nesuhe, com inteira
correspondência com a praticada na África. Como não poderia deixar de existir,
dedica um capítulo à economia do religioso e a escravidão. Além de fazer uma
reflexão sobre a economia dessas sociedades, demonstra o impacto da atividade
mercantil do tráfico de escravos com as
transações religiosas. Conclui, demonstrando os desdobramentos atlânticos,
diálogos e reconfigurações. Enfim, ele atinge o seu propósito básico: mostrar
as conexões históricas entre a Costa dos Escravos e o Brasil, em especial na
Bahia e no Maranhão.
Pesquisa
de décadas, onde, além de vasta documentação primária – em arquivos de várias
partes do mundo - e adequada bibliografia, alinha-se o trabalho de campo, por
vários anos no Benin e no Brasil, o que lhe permitiu uma ampla compreensão da
religião vodum. Modesto, típico de sua personalidade no âmbito público, termina
o seu livro, afirmando a incompletude do seu trabalho, indicando a necessidade
de novas pesquisas. Espera, entretanto, que nas suas mais de 400 páginas, possa
trazer subsídios para o entendimento da formação da cultura religiosa
afro-brasileira. Com certeza, conseguiu, e com sobras.
Fiquei
também muito contente com o belo trabalho de sua discípula, Lia Dias Laranjeira, abordando O culto da Serpente no reino de Uidá. Um
estudo da literatura de viagem europeia. Séculos XVII e XVIII ( Salvador:
EDUFBA, 2015). Trabalho complexo, na medida em que teve de traduzir os
viajantes – do francês e inglês – para o português, o que implicou em minuciosa
análise textual. Deve ser ainda ressaltado que grande parte da bibliografia
utilizada estava em língua estrangeira. Saliento isso, porque sendo seu livro
fruto de uma dissertação de Mestrado, espaço onde a maioria dos mestrandos – e
mesmo doutorandos – tem grande dificuldade com a leitura em língua que não a
portuguesa.
Já
no início do prefácio, Parés indica que a cidade de Uidá, na atual República do
Benin, apresenta grande interesse internacional. E uma das atrações mais
visitadas, noseu centro urbano, é o templo da Serpente Dangbe, emblema local da
religião do vodum. Voltemos a Lia Laranjeira. O seu trabalho, de natureza
historiográfica, temporalmente abarca de 1660 até 1727, quando Uidá foi
conquistado pelo reino do Daomé. Se, por um lado, é exigida uma perspectiva
crítica sobre o eurocentrismo da narrativa dos viajantes, com exageros que
aproximam sua escrita da ficção, por outro, é inegável, mostra a autora,
existem elementos documentais que a aproximam da fonte histórica.
Nos
dois primeiros capítulos, Lia, analisa o reino de Uidá na literatura europeia,
enfocando os primeiros contatos e instalações dos europeus na costa ocidental
da África; assim como enfatiza a importância de Uidá no campo da exploração
mercantil, em especial no tráfico de escravos. Em seguida, traça uma pequena
biografia dos viajantes e o caráter de sua produção literária. Nos restantes
capítulos, há uma concentração, em diferentes âmbitos, sobre a Serpente.
Desvendando a expressão fetiche,
apresenta as práticas religiosas de Uidá, destacando o protagonismo de Dangbe.
Segue, como toda boa pesquisadora, desconfiando dos dados, pois sente a
explícita intenção de mostrar uma África imoral e exótica, ao abordarem as
oferendas à Serpente e as interdições no culto à Serpente. Conclui, abordando a
visão sobre o feminino tendo por base os ritos iniciáticos. A partir das narrativas, percebe que ali era
um espaço de poder das mulheres, na medida em que somente elas incorporavam a
divindade, através da possessão. Como diz Nicolau Parés, por mim reiterado, o
livro fornece uma preciosa janela para compreender o período formativo das
relações atlânticas da África Ocidental. Uma jovem brilhante, que, com certeza,
muito mais irá nos oferecer. E, com qualidade.