GANHADORES: SIM, SENHOR
João
Reis é hoje um dos principais historiadores da Academia ocidental,
na abordagem sobre a escravidão africana no Brasil no século XIX.
Parece exagero o dito, entretanto, não o é, corresponde à
realidade do reconhecimento nacional e internacional de sua obra.
Agora, aparece com um novo livro denominado Ganhadores.
A Greve Negra de 1857 na Bahia
( São Paulo: Companhia das Letras, 2019 ). Um calhamaço de 400
páginas, dividido em 15 capítulos, acrescidos de prólogo e
epílogo, muito bem ilustrado.
Evidentemente
que ultrapassa meus objetivos maiores análises sobre seu livro, pois
isso caberá aos especialistas de sua área. Entretanto, isso não
impede que eu faça algumas considerações sobre a sua obra e
respectivo livro. Desde os seus primeiros trabalhos João Reis
pautou-se na compreensão do escravo como protagonista, não uma
vítima passiva do odiento sistema. Foi efetivamente um novo passo,
hoje consolidado, na historiografia brasileira. Porém, embora sendo
um ativista, o seu trabalho revela uma compreensão das nuances desse
protagonismo, não caindo na substituição da submissão pela
resistência. Há, como diria o bardo, entre uma e outra situação,
muito mais mistérios do que pensa nossa vã filosofia. E é isso que
o trabalho do baiano da Ribeira vem mostrando. João José Reis é um
amante do documento, pois – penso eu – acredita que ele é o
caminho para a compreensão dos rumos do indivíduo e da sociedade.
Ser um amante é verdadeiro, jamais um refém do documento: ele o
disseca criticamente, buscando nas entrelinhas e até no não-dito,
as possibilidades de entendimento da realidade. Para concluir sobre
sua obra, ele escreve como um etnógrafo, nos fazendo viajar com seus
personagens, dos heróis aos traidores, pelas ruas, feiras, cantos,
da velha Bahia.
O
novo livro de João Reis aponta em duas direções. Os ganhadores no
século XIX eram majoritariamente africanos. E, sobretudo após a
revolta dos Malês em 1835, foram perseguidos de forma inclemente,
sendo a principal perspectiva expulsá-los da Bahia, fazendo-os
retornar à África. A outra linha, se apoia na resistência dos
ganhadores diante de tal política, sendo um dos momentos mais
significativos, o que, segundo o autor, foi o primeiro movimento
grevista brasileiro, envolvendo todo um setor expressivo da classe
trabalhadora urbana de Salvador. Com maior significado ainda por seu
ineditismo em termos de mobilização, por suas características
locais e africanas. O estilo direto do autor, sem salamaleques,
acrescido sempre de sarcasmo ou ironia diante das jogadas dos
poderosos, é, como o foi nos outros trabalhos, pautado no caráter
denso de suas afirmativas ou mesmo hipóteses, não deixando dúvidas
para o leitor, até quando não tem as respostas. Nada do exposto é
de mais ou de menos, daí, nem afastar o leitor, nem tampouco
permitir que ele descanse em “enche linguiças” tão comum em
tantos trabalhos acadêmicos. Por isso que neste blog com “milhares”
de entusiasmados seguidores – na verdade, ele é acompanhado por 3
ou 4 “pirados” que se divertem com o que escrevo – eu jamais
pensaria em “avançar” sobre o livro, mas também parar aqui sem
nem enunciar os capítulos, seria uma injustiça com João Reis,
inclusive porque ele pesquisa para mim, sem honorários, sobre a
alimentação na Bahia. Espero não cansá-los. Serei fotográfico.
João Reis começa
demonstrando a tentativa de controle dos escravos dia e noite, em
especial os ganhadores. Faz em seguida, com belas ilustrações, uma
ampla radiografia do trabalho de rua. Caminhamos com o autor pelas
redes de solidariedades, pelos cantos
e sugestivas canções. Ao tentar destruir os cantos,
o governo gerou um mercado negro, com a tentativa de controle gerando
muitos conflitos. O famigerado Francisco Goncalves Martins buscou,
de todas as formas, impor a voz e vez do governo provincial contra os
africanos. Continuava a implacável guerra fiscal contra os
africanos, em especial os libertos, e a reação pessoal, inclusive
com o retorno voluntário para a África. E aí chega a “revolução
dos ganhadores”: a
greve negra de 1857. Não
demora vem o contraponto paternalista e o fim da greve que paralisou
a cidade. Daí chega o rescaldo, prosseguindo a tentativa de afastar
os africanos de toda e quaisquer atividades, do transporte de
mercadorias aos ofícios mecânicos. O que me deixou perplexo foram
as posições de João Nepomuceno da Silva, autor elogiado por Manuel
Querino. Além de criarem uma companhia de brasileiros livres para o
trabalho portuário, os africanos ainda tiveram contra si os
ex-combatentes da guerra do Paraguai. Porém, logo a companhia pelos
péssimos serviços desapareceria, com o retorno dos cantos,
mas já se abrasileirando. No décimo primeiro capítulo, ricamente
ilustrado, ele mostra que a partir da década de 80 do século XIX,
aparecem novas regras, com a transferência para a Polícia o
controle dos ganhadores. Através do Regulamento e do Livro de
Matrícula, mantinha-se o monopólio dos ganhadores, com seus
capitães, sobre os fretes do Bairro Comercial, mas os africanos já
eram 50% dos ganhadores. Com dados à “mão cheia” sobre os
ganhadores, já em muito crioulizados, no período citado, os cantos
já tinham múltiplas finalidades, não apenas o carrego.
Envelhecidos, os africanos perdiam o mercado do ganho, para os negros
e mestiços brasileiros, em grande parte gente que vinha do interior
da província, de fora de Salvador. Criterioso, o autor, apesar do
declínio dos africanos, ainda vai descobrir nos 89 cantos, 24
formados exclusivamente pela gente de “além-mar”. Isso não o
impede, vendo os acertos de Nina Rodrigues, de impor uma revisão
crítica ao autor maranhense, em relação aos seus postulados
afrocêntricos. É o momento de uma nova ideia de raça, com um
“festival de cores”; sintetizando, os cantos, antes pautados na
raça ou etnia, tinham a sua organização mais orientada por
princípios classistas. Aparece então Porcina, a “Chapadista”,
por haver vivido, antes de chegar a Salvador, na Chapada Diamantina,
proprietária de inúmeros escravos e da Banda de Música da Chapada.
Sem dúvidas, uma história de vida singular, repleta de
peculiaridades. Avança para a dispersão e conflitos nos cantos,
onde, entre outros aspectos, mostra uma inusitada aliança – mesmo
momentânea – entre caixeiros e ganhadores, sendo os africanos
minoritários nas desordens contumazes dos trabalhadores de rua. No
seu último capitulo, João Reis aborda os “corpos marcados”.
Uns, por decisão individual, com o uso de tatuagens, uns poucos com
dentes limados e escarificações étnicas; outros, marcados por
castigos, golpes de brigas, ferimentos de guerra, acidentes de
trabalho, lembranças da violência e brutalidade que muitas vezes os
envolviam.
Concluindo,
explicita que os africanos organizavam-se para reagir aos ataques a
eles dirigidos, assim como para sobreviver e competir no mercado de
serviços e vendas, através da formação de redes e grupos pautados
em identidades coletivas com dimensões étnicas e de classe.
Finaliza, dizendo que com o desaparecimento da população africana,
a discriminação seria dirigida para seus descendentes, na forma de
um racismo travestido de cientificidade, mas ainda baseado
popularmente no estigma da escravidão. Não esquecendo que nos
últimos anos do século XIX, nascia uma nova ordem, com uma
instituição africana, o canto de trabalho, servindo de escola para
que os ganhadores brasileiros começassem a se sentir como classe
trabalhadora, sem esquecer a sua condição racial. Ganhadores,
mesmo eventuais, o foram em vários momentos, como demonstra João
Reis; vê-los como vencedores seria talvez um excesso, mas
protagonistas para o surgimento de uma consciência de classe e
racial, sim; submissos, jamais.