A COMIDA DE TRABALHADORES URBANOS EM SALVADOR
A Bahia tem um repertório antropológico vasto sobre a alimentação, no
campo da religiosidade afro-brasileira, de Nina Rodrigues a Vivaldo da Costa
Lima. Muito pouco, no entanto, foi realizado
na linha iniciada por Thales de Azevedo, voltada para a compreensão do
que os baianos comem. É o que Fabiana Paixão Viana realiza, e com excelência,
no seu livro Menus dos Trabalhadores Urbanos: estudo do Calabar da Ezequiel
Pondé ( Salvador: EDUFBA, 2016). É um trabalho denso, criativo, envolvendo os principais
aspectos da contemporânea antropologia da alimentação.
Um autor, além de competência técnica
no seu fazer, acredito, também precisa de um pouco de sorte na sua pesquisa. A
descoberta do espaço de investigação de Fabiana, foi uma delas. Do Calabar, no
seu estrito senso, pensado inicialmente, depois de um susto com jovens armados
– era um momento de guerra envolvendo os grupos do Calabar e Alto das Pombas –
comendo uma deliciosa galinha de molho pardo no bar de Dona Domingas, ela
chegou ao espaço da sua pesquisa. Local, embora sem o tráfico de drogas, mais,
até mesmo que o Calabar, a expressar as contradições e desigualdades que marcam
a sociedade soteropolitana.
Ela demonstra, sem filigranas,
que o entendimento antropológico da alimentação envolve variados planos da
realidade social. A compreensão dos sistemas alimentares é uma forma de abarcar
a história e as transformações que ocorrem no mundo contemporâneo. Fabiana começa
contextualizando o seu objeto no tempo e no espaço. Sob uma perspectiva
analítica situacional, ela explicita que são as interações que definem
os espaços. São as pessoas que fazem a
cidade e estabelecem fronteiras: assim as classes médias do Jardim Apipema
buscam se afastar do contíguo Calabar. Daí as “fortalezas”, o vazio de gente
nas ruas e a sociabilidade extra-local, induzida e facilitada pelo automóvel
particular. Já o Calabar, bairro de trabalhadores, estigmatizado pela pobreza e
tráfico de drogas, é movido por uma lógica comunitária, mas sem qualquer
guetificação. Nada de “aldeia urbana”,
mas sim, um espaço marcado pelas conexões, em termo de mobilidade física, e
plenamente inserido na modernidade que envolve Salvador. Uma área privilegiada
dos menos abastados de Salvador: ônibus fácil, proximidade de bairros nobres e
seus serviços, andando os moradores chegam à praia de Ondina ou Barra, além de
estarem fisicamente no centro do circuito do carnaval da Barra.
Ao “construir” o Calabar da Ezequiel Pondé, a autora traz à tona, sob um prisma
específico, a relação constitutiva da vida citadina – vista lá longe pela
Escola de Chicago – a proximidade geográfica/ distância social. Separados por metros das classes médias
do Jardim Apipema, os moradores do espaço de pesquisa de Fabiana, são
violentamente discriminados por seu estilo de vida. Por a rua ser uma extensão
da casa, nela eles vivem o seu lazer, com a música de sua preferência, em
especial o pagode, a dança e o jogo de dominó e cartas. A altura do som, a
alegria constante nas festas e reuniões, a forma sensual no dançar, indigna os
moradores, em especial, pela contiguidade, do prédio Edifício Praia de
Guarapari.
A sua concepção de cultura das classes
trabalhadoras urbanas, pautada em Luiz Fernando Duarte, mostra uma invenção
peculiar, com valores próprios, ordenada diariamente e conhecida por todos. Seus
sinais básicos, diacríticos, ganham corpo ao nível de uma identidade oposta às
classes médias. Porém, ela ressalta, isso não quer dizer que ela somente existe
quando posta em confronto, e muito menos que se constitua como negação ou
reprodução da cultura das classes médias. Conforme Duarte, ela é hierárquica e
holista, em oposição à ideologia individualista que norteia a versão letrada e
ideal da cultura moderna das classes médias. Para os trabalhadores, há uma
preeminência do grupo, a coletividade se impõe à individualidade. Nela, a
família, o parentesco e a amizade dos vizinhos tem um peso simbólico significativo,
como dizem: “aqui é tudo família”, inclusive para designar a ausência de
violência e tráfico de drogas no local. No
plano ideológico, o modelo familiar tradicional e hierárquico, com a submissão
da mulher e dos filhos ainda se mantém. No entanto, eu vislumbro ser
avassalador o modelo igualitário e individualista de família, seja em relação
às mulheres, seja em relação aos filhos. Como um dos moradores disse: “a
desgraça dali são aquelas mulheres”, como uma reação machista ao poder e
individualismo das mulheres no pedaço.
Fabiana parte para o campo e como todo
antropólogo tenta tornar o estranho – na própria sociedade há descontinuidades
enormes entre o mundo do pesquisador e
realidade a ser investigada, conforme Gilberto Velho – familiar e conhecido. Teve suas dificuldades,
afinal, é branca como leite, magra e alta, muito distante do perfil das moças e
mulheres da região. Mas, a “banca” – revisão dos trabalhos escolares das
crianças – abriu para ela as portas do campo. Além da observação, com registros
no diário de campo, realizou entrevistas semi-estruturadas com 18 mulheres,
responsáveis pela preparação diária das refeições dos grupos domésticos. Cada
entrevista revela as singularidades, a heterogeneidade dos grupos domésticos,
seja nas relações sociais, seja em relação à comida e ao comer. É muito
prazerosa a leitura de elementos das histórias de vida das entrevistadas. Gente
que tem, muitas vezes, pouco espaço para expressar seus valores e seus desejos.
A cozinha doméstica, assim como na
maioria das sociedades ocidentais, permanece como espaço de trabalho da mulher.
E o seu aprendizado se deu através da família, pelas mães. Há casos, em que o
aperfeiçoamento e a variação se deu em função do emprego doméstico em famílias
das classes médias. O que desponta na sua investigação é que cada vez mais a
alimentação diária perde o seu caráter de sociabilização e ritualidade. O
caráter comunitário, ritualizado, aparece sim, nos aniversários, ou em datas
como dia das mães, Natal, São João, muitas vezes envolvendo todos os moradores
da rua.
Ao tratar dos gostos alimentares, Fabiana
observa a diferenciação das preferências de acordo com a idade. O comedor é
sempre plural, com mudanças nas práticas alimentares, por variadas causas, no
decorrer da sua existência. Não há
grande variação nos cardápios diários, predominando feijão, arroz, macarrão e
algum tipo de carne. A farinha, sempre presente junto com o feijão e o arroz, é
naturalizada, tão usual que não precisa ser dita.
Ao
abordar comida e classe, Fabiana atenta para as diferenças do comer entre as
classes trabalhadoras urbanas e as classes médias. Porém, isso se dá devido ao desnível
econômico, não pelo desconhecimento da qualidade dos produtos e ingredientes.
Assim como as classes médias, há uma aquisição e consumo de produtos
industrializados, sejam os prontos para o consumo imediato ou aqueles que necessitam
uma adicional complementação culinária. A diferença entre as classes sociais
está na quantidade e na qualidade dos produtos. Óbvio que as classes
trabalhadoras sentiram o impacto de forma mais lenta no campo alimentar, mas
foram alcançadas, seja pelo fácil acesso ao mercado de produtos
industrializados, o consumo de fast-food, e a incorporação de alguns “pratos
étnicos”, como a pizza, a lasanha ou o
estrogonofe.
O
grupo mantém, de forma geral, um menu tradicional, pautado no feijão, arroz,
farinha, macarrão, algum tipo de carne. Porém, de acordo com a disponibilidade
financeira, podem ser adicionados outros produtos, como melhor tipo de carne,
lasanha e até mesmo um whiskizinho. Òbvio que a ele deve ser adicionado o menu
racional, com critérios específicos para atingir uma meta determinada; o menu
de conveniência, minimizando o tempo e o esforço requerido para a preparação da
comida; o menu econômico, onde o fundamental é manter os custos da comida
dentro de um orçamento restrito; o menu moral, no caso, onde o princípio
ecológico e político, como no caso da garota vegetariana, predomina. Pode um
determinado menu predominar em um grupo doméstico, ao mesmo tempo em que ele
poderá comtemplar outros menus. Evidentemente, um fenômeno da
contemporaneidade, da família moderna, está presente também nos grupos
investigados: o atendimento às preferências alimentares das crianças e jovens.
Vale
salientar a heterogeneidade do grupo, onde alguns membros
se distinguem, sendo ´portadores de respeito e prestígio. Da mesma forma que
são execrados os bêbedos contumazes, criadores de problemas, assim como os
usuários de drogas que perturbam o
ambiente. Poucos, é verdade, e já perfeitamente identificados pelos membros da
rua.
Como
em toda Salvador, é basicamente na
Semana Santa, onde todos se “lambuzam no azeite”. E, para completar começa a chegar com força a
igreja neo-pentecostal, fazendo a associação entre o azeite e o candomblé. Mas,
como os baianos mantém o acarajé como um snack uma merenda – e às vezes como
refeição mesmo –, já se firmou também o
“acarajé de cristo”, apesar das reiteradas queixas do povo de candomblé.
Embora seja uma população
majoritariamente mestiça, além de um maior numero de pretos em relação aos
brancos, inexiste, de forma geral, vinculação com os movimentos negros ou os
blocos afro. Ninguém desconhece o racismo, entretanto, o operador básico na
movimentação do grupo está na economia, na classe social.
Não poderia deixar de abordar a maneira como trata a relação entre
alimentação e gênero, mostrando a desigualdade e as relações de poder. A
cozinha, como já foi explicitado é um campo da mulher. Apenas um homem foi
identificado como participando da elaboração da comida do grupo, por outro
lado, pode ser notado que, pelo menos, em um grupo estudado, há uma forte
presença do padrão tradicional de vinculação de gênero, sendo a dominação
masculina exercida de forma autoritária. A
maioria dos grupos domésticos – 72% -
é chefiado por mulheres, forte característica das classes trabalhadoras
baianas, a ponto de Maria Gabriela Hita ( A Casa das mulheres n´outro terreiro.
Famílias matriarcais em Salvador-Bahia. Salvador: EDUFBA, 2014 ) denomina-las
matriarcais. As chefes de família, jovens ou idosas são as responsáveis pela
cozinha e demais afazeres domésticos, com apenas dois casos em que uma irmã e
uma filha participam nos trabalhos da casa. Na sua perspectiva, termina por
revelar seu lado feminista, ao expressar a sua raiva contida, diante da
exploração intra-grupal de mulheres idosas. E, complementa, demonstrando as
“táticas”, utilizadas com criatividade e malícia pelas mulheres chefes de famílias,
como uma forma de enfrentar as desigualdades e a dominação.
Enfim, é um livro prazeroso, de leitura
fácil, mas instigante pelos caminhos que
percorre, objeto de muitas controvérsias e necessitando de complementações com
outras pesquisas. Fabiana abriu a porta e os convida para uma boa leitura e bom
apetite.